Três da tarde. Quarenta graus à sombra. Fechado na frescura do feldespato. Cheiro ácido a porco vindo lá dos"fundos". As primas já cá deviam estar para brincar aos médicos entre presuntos na obscuridade ominosa da cave brigantina.
Na casa ao lado, o meu tio Abílio mantinha uma mercearia com loja para estacionamento de burros em trânsito com pessoal de Gimonde, Carrazeda e Sacóias. Belo negócio... Para mim, apenas mais moscas!
Logo à frente o quartel dos bombeiros. A sirene não parava de apitar. Fogos devastavam as serras e Montesinho, Bornes e Nogueira... Para mim, apenas barulheira.
Ás 17h tinha lição de acordeão nas freirinhas. O método era 1-2-3-4-5-6-7. Cada número sua nota. Não cheguei a perceber quem era mi... muito menos onde era lá.
A rua era a "De Trás" por contraposição à rua "Direita", exercício regional de duvidosa democraticidade. Ambas bifurcadas na Praça da Sé, em direcção à tutelar torre de menagem.
Casa de três pisos e loja, paredes meias com a Câmara Municipal, a escassos cem metros do Museu Abade Baçal. Gravada no granito frontespício, a data abissal de 1783.
O meu avô Domingos, cidadão honorário de Zamora, vinha da raia com brilhosinho nos olhos sempre pontualmente às sete para jantar. A minha avó Olinda disfarçava e o pessoal tentava não ter conversas polémicas, engolindo rapidamente a sopa de feijão verde e a alheira com grelo cozido... Política nunca!
Depois do jantar a rua estalava de calor acumulado. Caminhada esforçada até ao "Café Leão", ali a 300 metros. Saturação de tabaco. Bicas suadas. Conversas encaloradas. "Que grande que ele está"... "Cada vez mais igual ao pai"... "Então sempre queres ser médico quando fores grande?". Grande já eu era. Tinha 12 anos! E, francamente, não tinha a mínima vontade de ser qualquer coisa. Queria era sair dali rapidamente. E as primas nunca mais vinham. Porra!
A bisavó Marta, com lúcidos 99 anos, vestia-se a preceito enfrentando o preto e branco da televisão Grunding com sorriso de cerimónia. Respondia à locutora de serviço, na certeza de que estava dentro da caixa iónica e que falava directa e exclusivamente para ela, alheia a qualquer tentativa de explicar o conceito de teledifusão.
As moscas atacavam manhã cedinho, na manivela escorregadia da bomba do poço situado no fundo do quintal. Cento e cinquenta pesasdas voltas enchendo a cuba de granito para a rega da tarde, aumentando exponencialmente os enchumaços ósseos dos meus ombros magritos.
Depois vinha a apanha dos figos de capa-rota em escadas gigantes de ferrugem, fugindo a abelhas gulosas e vespas assassinas. Trabalho escravo supervisionado pelo avô puxando o ancinho entre alfaces francesas e morangos serôdios.
Às onze estava pronto para o primeiro folar do dia, guloso do presunto e das pernas de frango. Sentado na sanita de emergência na varanda em sobrado com janela panorâmica para o quintal via lá em baixo gatos malhados tentando passar despercebidos na penumbra da couve galega fugindo aos chumbos incertos da "Diana 23".
O almoço aproximava-se rapidamente sob a forma de uma nojenta canja de perdiz carregada de miúdos, seguida de rojões com batata entalada. Para rematar, o habitual queijo com marmelada. Em dias especiais havia pisperno, com nabo e casula. Sobremesa, o fumegante chouriço de mel com amendoas, com apetitoso aspecto a cocó fresco e sabor a goiabada de porco.
Agosto... Todos os anos era raptado em plenas férias grandes. 3450 curvas. Entalado no moderno Simca "Aronde", entre cestas de reforço gastronómico para o caminho e a omnipresente governanta Alice. Pernoita obrigatória no "Grande Hotel do Luso". O indispensável bacalhau em Torre de Moncorvo, para evitar o derradeiro vómito... Bragança à vista. Nove meses de inverno, três de inferno. Para mim era sempre inferno!
Agosto... Que estava eu a fazer naquela pasmaceira? Subtraído à moderna Nova Oeiras... precocemente retirado às namoradinhas de praia... distante da Marginal... violado a meio das férias grandes... contrariado no mais profundo do meu ser?!
Quarenta Agostos passaram. Muitas mais moscas morreram. Familiares também. Já não há casa de granito. As primas já não querem brincar aos médicos. O "Café Leão" é agência bancária. As curvas de Foz Côa esqueceram-se da vertigem nos acidentes do IP4. O castelo ergue-se agora entre desvairada especulação imobiliária. Os bombeiros continuam a apitar. As serras continuam a arder... Eu sobrevivo noutra qualquer pasmaceira entre o "grande salpicão" e a "chouriça fatal" esperando a hora do "divino folar" que, num Agosto qualquer, hei-de inevitavelmente saborear!
(jp)
8 comments:
Belas férias, excepto para as moscas...
MARAVILHA DE FERIAS, PARA MAIS TARDE RECORDAR, BOA HISTORIA BEM ESCRITA...GOSTO. NÃO TENHO O LIVRO
Esta não está no livro.
NÃO???? MAS PODIA.....
A TV era Grundig, não Grundug...
O carro era Simca Aronde, não Sinca...
Obrigado Graalice Vanessa. As correcções estão feitas.
Anónimo amigo, esta irá para o 2º livro(?). Ainda tenho alguns livros disponíveis para leitores assíduos.
Ai que saudades me deu...e que pena não estar no livro...
...' as primas já não querem brincar aos médicos '... comove-me essa passagem...
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