4.7.07

CONTOS DA RIA - A BOLA DE BERLIM

Contrariamente a muitas colegas ela ia viajar. Outras não passariam da montra da Pastelaria Felismina expostas à cobiça de gulosos clientes na certeza de serem devorados sem verem o mundo. Ela, porém, ia à praia!
Com ar sorridente e muito redonda, a bola de Berlim deixou-se aconchegar no fundo da caixa. Era uma bola simples. Sem creme. A sua natureza rotunda garantia-lhe boa disposição. Dentro da caixa tudo era doce. Um ligeiro cheiro a fritos fazia-a sentir-se em casa. A escuridão transmitia-lhe frescura e serenidade.
A bola de Berlim estava preparada para enfrentar a precaridade da vida.Tudo se decidiria nas próximas dez horas. Ou seria devorada ou seria inapelavelmente deitada ao lixo. Sabia que seria assim e, no entanto, ia receosa.
Amalia Simionca pegou nas duas caixas de bolos e entrou no barco. Lá atrás, Alexandre, um mocetão da ria, acelerou os 75 cavalos do motor em direcção à praia. Estava maré-cheia na manhã límpida de sudoeste moderado. O "Espadarte" deslizou até à ilha. Eram nove horas.
Amália lançou as pernas esbeltas e tisnadas para fora do barco. Calções curtos deixavam entrever uma nesga de perna branca no resvalar da amurada. Corpo suave e musculado, sorriso aberto que olha de frente. Há três anos viera da Roménia. Buscava legalização. Se encontrasse o homem certo talvez casasse.
Pegou nas duas caixas de bolos e lá foi praia fora. Amália percorria quilómetros à espera que a chamassem. As bolas gostavam de Amália. O modo calmo e prazenteiro da mulher inspirava-lhes confiança para enfrentar o seu único dia de vida.
De vez em quando a tampa da caixa abria-se. A bola de Berlim via a cara sorridente de Amália e, por cima, um céu azul reverberante de intensidade. A seu lado uma colega lançava um grito aflito e desaparecia puxada por duas tenazes. A tampa fechava-se e a caixa ficava mais vazia.
Perto do meio-dia o calor era insuportável. As bolas com creme que ainda sobreviam derretiam pegajosamente com ligeiro cheiro a ranço.
A tampa abria e fechava. A luz entrava e saía. O sorriso de Amália rapidamente desaparecia e ninguém a queria... A bola de Berlim pôs-se a pensar se não seria falta de creme!
Eram quase seis da tarde e nada. Amália fazia penosamente a útima ronda dos guarda-sóis. De repente um sinal. Um grupo grande de veraneantes chamava ao longe. Amália correu esperançada em libertar o resto da carga. Era um grupo com grande apetite. A tampa abria e fechava... No fim só restava ela, a bola sem creme, encurralada no canto escuro da caixa.
E a tampa fechou-se definitivamente deixando-a sozinha. Sentiu a caixa muito grande. Muito desconfortável. Sentiu-se rejeitada.
Subitamente, vindo do mar, um miúdo em correria gritou: "Mãe, quero uma sem creme". A bola de Berlim sabia que era a sua vez. Sentiu-se excitada. Um misto de receio e de exaltação. Arredondou-se o melhor que pode. A pinça agarrou-a com firmeza. A bola tremeu, sustendo um ligeiro pânico. O sorriso indulgente de Amália deu-lhe coragem. Rapidamente foi introduzida num saco transparente e cuidadosamente depositada na areia.
Num breve momento a bola e Berlim viu o mundo. Viu o mar esmeralda na rebentação branca. Viu conchas espalhadas ao acaso pelo areal. Viu o Sol brilhando lá no alto. Viu gente. Muita gente. Gente que falava. Gente que nadava. Gente que parecia dormir. Gente gorda. Gente magra... Muita gente!
O miúdo chamava-se Pedro. Dirigiu-se guloso à bola de Berlim que estremeceu contendo um grito de pavor. À medida que o miúdo se aproximava as mãos pareciam cada vez maiores. Num assalto final agarrou na bola que se encolheu num reflexo desesperado. Antes de ser dilacerada, a última imagem que teve foi uma boca escancarada com dentes brancos muito afiados abrindo-se horrivelmente sobre si.
Ao longe Amália seguia em direcção ao barco, feliz por ter acabado mais um dia de trabalho. Alexandre olha de soslaio as pernas tisnadas da mulher. O barco arranca suavemente no calor do pôr-do-sol.
Texto de jp
Fotografia de Roberto Barbosa

No comments: