Sou essencial. Sem mim não há Verão. Dou cor à praia. Dou guarida aos encharcados. Agasalho do vento. Sou cama para bronzear, leito para descansar.
Passo o Inverno expectante. Tenho uma gaveta só para mim. Não me misturo com as banais toalhas de banho.
Sou uma toalha de praia. Uma toalha fina. Frequento as melhores piscinas, as praias mais exóticas. Já estive nas Bahamas e nas Maldivas. Sou uma toalha viajada!
Há toalhas pirosas às flores. Toalhas de feira com paisagens e palmeiras. Toalhas "souvenir" com vistas de postal ilustrado. Depois há as toalhas decentes. Eu sou uma toalha clássica toda em azul-escuro.
A minha dona é uma miúda linda. Tenho crescido com ela. Agora, nos seus dezassete anos, está uma mulher sensual e apetecível.
Quando se deita de costas em cima de mim sinto-lhe as nádegas firmes e as coxas voluptuosas. Quando se vira, os seios redondos e túrgidos moldam-se no meu tecido turco deixando marcas indeléveis de puberdade ansiosa.
À tarde deitam-nos na areia em grandes círculos. As miúdas falam de namorados distantes e dizem mal de amigas ausentes, enquanto mastigam com deleite bolas com creme e gomas multicolores vindas de Espanha. Nós, as toalhas, ficamos ali preguiçosas escutando as conversas com curiosidade, enquanto tocamos umas nas outras num ritual diário de sensualidade contida.
Ao fim da primeira semana a pele delas está castanha. Textura de pêssego. Sabor a sal. Mergulham excitadas no mar cálido que as envolve com delícia. Nós aguardamos que voltem, loucas por provar um pouco daquele sal que se lhes cola ao corpo em cristais transparentes de oceano.
À medida que o tempo passa vou ficando cada vez mais dura. Não sou já aquele tecido inerte dos primeiros dias. Agora o sal dá-me consistência. Desenvolve-me os músculos atrofiados que trouxera de Lisboa. Já não sou um mero pano amorfo e definhado. A pouco e pouco vou ficando com o corpo rijo. Quase me ponho de pé!
Detesto água doce. Não quero ser lavada. Quero manter-me forte. Cada vez mais forte e para isso preciso de sal. A minha secreta ambição é andar. Não quero depender desses imprevisíveis humanos. Quero poder vir sozinha à praia.
A última semana de férias é sempre dramática. Em breve deixaria o Sol, a areia, o sal... Voltaria para a minha gaveta escura, inerte, morta... Todos os anos era assim! Este ano, porém, foi muito pior. Um dia a mãe disse: "Margarida, essa toalha está um nojo. Temos de comprar uma nova urgentemente!". Entrei completamente em pânico. Nunca mais veria o Sol. Deixaria de ter serventia. Estava perdida!
Naquele dia as miúdas foram dar o habitual passeio até ao fim da ilha. Sabia que iam demorar mais de uma hora. Os adultos estavam lá mais para baixo, refugiados na sombra do guarda-sol. Era agora ou nunca!
Comecei a mover-me lentamente, muito lentamente. Os meus músculos de sal gemiam de dor. Devagar, discretamente, arrastei-me em direcção ao mar. Ninguém reparava em mim. Continuei com esforço titânico. Centímetro a centímetro... Metro a metro.
Tinha a certeza e poder nadar. De conseguir flutuar. Queria fugir. Fugir para sempre. Tinha a certeza de que o mar me levaria para paragens distantes. Longínquos areais onde passaria o ano inteiro ao Sol, correndo pela praia, descansando na areia, secando ao vento, cheirando o sal da maresia.
Continuei a deslizar. Agora sentia a areia húmida e a espuma da maré. Um derradeiro esforço e consegui levantar-me. Pela primeira vez na minha vida estava de pé. Vi a praia em toda a sua extensão. O horizonte sem fim e o mar logo ali. Mergulhei sem hesitar. Estava salva!
A água está cálida e macia. A maré vazante puxa-me para o largo. Ninguém me viu. Estava entregue a mim própria. Dou duas braçadas fortes... três... quatro... Que é isto?! A força começa a faltar-me. Não consigo controlar o meu corpo. Os músculos cedem. Dissolvem-se na água do mar! Entrei em desepero. Quanto mais esbracejava mais me afundava. Gritei. Ninguém me ouvia. As ondas puxam-me para fora. O peso da água leva-me para baixo. Era novamente um simples pano. Um pano à deriva. Ia-me afogar!
Sempre pensara que o sal me iria fortalecer ainda mais os músculos. Nunca pensara que os ia dissolver!
Estava perdida. Cada vez descia mais. A água era agora fria e escura. Deixei de ver o Sol. Já não me debatia. Era inútil. Estava condenada. A minha ambição tinha-me perdido.
Lá em cima um ruído agudo e metálico pairava sobre mim. O hélice de um barco rodava negligente sugando tudo à sua volta. Não podia fazer nada. Acabei estraçalhado, dilacerado em mil pedaços.
Deixei de existir. Desfiz-me. Perdi-me no oceano. Nunca mais vi o Sol. Nunca mais vi a praia. Os mil pedaços que eu fora rapidamente apodrecerão. Só ficará o sabor do sal, esse sal que me atraiçoara!
Texto jp
Fotografia Roberto Barbosa
7 comments:
Este era o conto que estava no alinhamento. Ainda faltam dois. A pedido de várias famílias vou rever "O GRANDE CHOCO" e ver se dá para editar.
estranho não vos conheço...
não conheci o prof.Rob pessolmente so do blog e todos os dias e ainda hoje passo por lá. Senti a partida como de alguem da minha juventude. atravez do blogue dele cheguei ao seu e muitos outros (de gente mais nova), porque dizia que era bom alem de escrever bem tinha boas fotografias.visitei e por cá fui ficando. gosto de o ler,acho piada porque nas diversas fotografias do Algarve conheço os sitios como eles eram á muitos anos. não sei se tenho o direito de comentar mas ás vezes apetece-me. peço desculpa.
gostava de ler o seu primeiro livro assim como o segundo que se avisinha.
Claro que dá para comentar.Quem estána blogoesfera agradece comentários. Quanto ao livro, é questão de combinar como e onde. Tenho todo o gosto na oferta.
jp
Ainda não li o texto, mas ia comentar que a imagem está fantástica. Quando ia a clicar no comentar, li a ultima linha depois de JP. Amanhã leio o texto com tempo e a foto está fantástica.
bjo
Estes contos acalmam-nos as saudades...
Gosto muito de vir cá..
Obrigado expresso.
não sei como este carioca ficou "carioca 2", mas enfim, foi sem querer.
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