Embora extinta em 1912 a Carbonária deixou entre nós marcas indeléveis. Quase 100 anos depois proliferam por esse país fora as Confrarias Gastronómicas de clara influência maçónica e templária. Afirmam-se gastronómicas. Defendem valores culturais da região. Organizam benfeitorias. Promovem o convívio... Mas, para além disso, o que se esconderá por detrás de toda aquela gordura e vinho tinto? Não acreditamos que andem nisto apenas pela demanda do "colestrol perdido". Seguramente haverá outras motivações, porventura secretas. Fomos ver...
A10. Direcção Benavente. Passando o mítico Rio Grande da Pipa, subitamente apodera-se de nós um nevoeiro intenso. Vogamos por entre a campina ominosa que se estende pela fronteira do imaginário. Sem qualquer pré-aviso, o novoeiro dissipa-se com a mesma velocidade com que tinha aparecido. À nossa frente surge uma humilde choça, perdida nas lezírias da Companhia SA.
A reunião do Capítulo é anual. Os confrades e confreiras, quase todos excelentíssimos engenheiros e merítissimos doutores, envergam os trajes sacramentais, ostentando as prebendas do respectivo grau. A cerimónia abre com fanfarra, tocando música siciliana que nos faz recordar os dias tenebrosos da Calábria.
O Grão-Mestre dá as boas vindas às delegações de Espanha e França e, acompanhado pelo amigo Arlindo e o seu acordeão tântrico de provecta idade, não poupa críticas aos comportamentos dos ímpios, apelando a uma cruzada contra a extinção da Comissão Nacional da Gastronomia e prevendo mesmo o pior: a extinção da própria gastronomia ou até o fim da culinária, passando pela obnubilação total do estômago.
A Mestre de Cerimónias agradece ao Engenheiro Gonçalo de Sá Só Si pela cedência do espaço e à Companhia SA pela cedência do tempo. O Engenheiro Sá Só Si agradece à Confraria terem-lhe tirado o espaço e a Companhia SA agradece a todos terem-lhe roubado o tempo. Toda a gente agradece a toda agente que agradece a toda gente por agradecer a toda a gente durante aproximadamente uma hora. Este é o ponto alto da cerimónia: a anulação do ego, a assumpção de um estado de absorção colectiva que acabará por nos levar às portas do Nirvana, ali a cerca de 5km de Santarém. Finalmente o Presidente da Direcção, chamada "Burra de Ferro", a lembrar os bons velhos tempos da Carbonária, agradece ao Engenheiro Gonçalo Refrão a enormidade do infinito na santidade do vinho tinto, dando a palavra ao convidado de honra, Gonçalo Chavão que proferiu, lenta e pausadamente, a oração de sapìência, em tom de mantra repetitivo apelando à meditação profunda e à transcendência do absoluto.
Ficámos a saber que "Os afectos redundantes que emanam do fundo do coração estão enraizados nesta realidade pouco consolidada que aguarda a vitamina na intempérie das gerações vindouras. E em breve as vozes ultramontanas se calarão e a cabeça pujante vencerá o paroquialismo enfezado". Nesta altura o 1º Almotacé começa a levitar, enquanto o 2º Almoxarife ronca profundamente.
São 15 horas. Lá dentro, na cozinha, as perdizes, lebres e coelhos, começam a impacientar-se dentro das panelas, ansiando precipitar-se para os nossos pratos. É preciso contê-las!
A Mestre de Cerimónias toma de novo conta dos acontecimentos, agradecendo aos agradecidos pelos agradecimentos agraciados. Pede-se silêncio. Momento alto. Os nomes dos neofitos são proferidos sempre acompanhados da respectiva cédula de registo profissional. Às 16 horas a entronização passa a eternização e agora são os faisãoes e os pombos bravos que teimam em desabar sobre as travessas. Os noviços, depois de armados "cavaleiros do tacho" pelo toque mágico da colher de pau nos ombros, proferem em coro o juramento sagrado: "wdravonfrdbvxkyradcxjpghbeasfxer" (foi-me proibido revelar esta parte).
A Mestre de Cerimónias declara então aberto o convívio secular, não sem antes agradecer ao já agradecido desejando um muito obrigado, por quem é, se faz favor, no obséquio das graças por poder agradecer a quem tanto lhe agradece.
Às 17h as mesas do almoço são cuidadosa e repetidas vezes checadas e recontadas por diligentes adjuntos do Almoxarife, sujeitos ao controle final do Averiguador-Mor, Presidente do Conselho Fiscal, conhecida por "Mata Bicho", na linguagem pseudo-maçónica.
Ordas de perdizes, lebres, javalis e coelhos abatem-se então sofregamente sobre nós, em grande balbúrdia, num cozido bravio, procurando falar todos ao mesmo tempo e lutando selvaticamente por chegar em primeiro lugar ao nosso palato. As cenouras e nabos chegam com atraso e contra vontade. Só o feijão-artilheiro se comportou com dignidade.
A Mestre de Cerimónias e o acordionista continuavam a agradecer na constância da permanência que, como se sabe, é igual ao quadrado do cateto.
Saimos dali muito agradecidos, a louvar tudo e todos, em especial as perdizes e lebres que fizeram o favor de se estilhaçar para consolo estomacal...
jp
2 comments:
Pela Burra de Ferro se não foi mesmo assim! Eu não diria melhor. Onde estava escondido? Bem acautelou o xanfrado mor contra os ímpios ...
Ainda bem que havia testemunhas. Estava quase a pensar recorrer ao Conselho da Puridade para obter certidão formal, devidamente agraciada, claro.
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