4.5.08

FILHOS DO POVO DO SUL - I

Naquele tempo não havia testes de cromotografia em camada fina ou de mera presunção. Metia-se o que aparecia. Risco total!
Podia ser veneno puro, "estrica" em estado virgem. Mas havia confiança nos "dealers". Gente fina da Linha de Cascais. Gente com reputação a defender. Gente que testava o produto com empenho profissional por vezes até à exaustão.
No café "Limo Verde", ali na Parede, transava-se à balda. Entre bicas, surgia um saco plástico em cima da mesa com meio quilo de liamba ou seruma, vindo directamente das colónias. O haxe, na época, era coisa rara.
Entre stonões ainda havia tempo para estudar, tirar cursos, ser doutor! Sobretudo, havia tempo para tocar. A música era o vício final, ritual primordial, "despertar dos mágicos".
Queríamos ser diferentes. Diferentes de nós próprios. Narcisistas. Intelectuais. Modernos. Quisemos ser qualquer outra coisa. Qualquer coisa que não fosse aquilo que viríamos inevitavelmente a ser!
Tocar bem ou tocar mal era irrelevante. É preciso coragem para desafinar em púbico e continuar a desafinar cada vez mais até desafiar as notas, ultrapassar harmonias, desatinar melodias e entrar no inconsciente da Música, onde tudo é permitido.
Aliás, o que o público? Para além dos "groupies" que flutuavam permanentemente à volta da banda e que eram já parte de nós, o público era uma massa anónima que tinha o privilégio de assistir aos nossos concertos e nos mantinha o ego elevado. O "nosso público", por outro lado, gostava de estar onde nada era perceptível para se sentir o mais elitista possível.
Nesta aparente contradição, tínhamos poucos fãs, mas bons. Quanto mais "underground" fosse a música, menos público havia, mais elitistas se sentiam os fãs… Logo, estávamos a tocar altamente.
A verdade é que éramos mesmo intelectuais. Tão intelectuais, que o então jovem entrevistador intelectual da Rádio Renascença, José Nuno Martins, me perguntou no intervalo de um concerto intelectual: "Quais são as vossas influências musicais?" (pergunta avançadíssima para a época). Ao que eu balbuciei, perdido na ambiguidade do ácido, enquanto lhe via o nariz crescer até aos pés: "Olha, meu… eu de música não percebo nada. Aquele ali é que sabe!" E empurrei-o para os braços do indefeso Manel Baião que, como sempre, ainda conseguia dizer umas aldrabices pomposas próprias para jornalistas. Eu refugiava-me, cobardemente, no conforto da cónica que fumegava no camarim-retrete reservada aos artistas.
ET: Inicia-se hoje a publicação on-line do meu livro "Filhos do Povo do Sul - História de uma Banda Rock dos Anos 70".
jp

5 comments:

António P. said...

E por este post de abertura a visita, às 2º feiras, passa a ser obrigatória.
Boa semana JP

maria antunes said...

Gostei do texto. Estou ansiosa pelas novas aventuras músicais ou não dos filhos do Povo do Sul, às 2as-feiras.

Anonymous said...

O bom SOM anda a granel por aqui!

Forte abraço!

Fantomas said...

Muito interessante o Blog!!!!

Edward Soja said...

Olá, amigo JP

De blogue em blogue, de salto em salto, à procura destes artigos sobre os Ephedra...

Muito bom.
Tenho um blogue, muito simples, que pretende dar a conhecer bandas.
Chama-se Mostrai-vos. Passe por lá e contribua.

Obrigado desde já.
Abraço.