No princípio dos anos 70 a música popular estava em mutação profunda. As canções passaram a chamar-se peças; os bailes transformaram-se em concertos; o romântico deu lugar ao intelectual; a dança masturbativa virou êxtase circunstancial; a cerveja marialva, erva sazonal.
As bandas fugiam ao som estereotipado dos "Beatles" e "Rolling Stones", passando rapidamente ao desvario psicadélico dos primeiros "Pink Floyd"; às sessões stonadas dos "Traffic"; ao exotismo narcisista dos "Jefferson Airplane"; ao "acid rock" dos "Grateful Dead"; à desbunda organizada dos "Mothers of Invention". De repente a música pop deixou de ser em três acordes em compasso quaternário. O refrão deixou de ser essencial. A melodia não era para assobiar.
Naquele tempo o rock queria ser jazz e o jazz tentava ser rock. Época de transição, de perturbação geracional… Época de mudança!
Naquele tempo o Sid Barrett, fundador e mentor dos "Pink Floyd", estava já internado depois de ter alucinogenado tudo de uma só vez no primeiro álbum "Piper At The Gates Of Dawn", de 1967, relegando-nos para sempre no seu "Astronomy Domine". Morreu autista em 2006. "Wish you where here…"!
Naquele tempo "The Doors" estavam prestes a perder o carismático sexista Jim Morrison, falecido em 1971, deixando-nos, paradoxalmente, o duplo álbum "Absolutely Live" para celebrar o Lagarto… A Janis Joplin já tinha apanhado a overdose eterna, levando consigo o grito rouco da rebeldia e inconformismo… O Jimi Hendrix levitava nos mundos paralelos do "wah-wah", deixando-nos intrigados com "1983… (A Merman I Should Turn To Be)", do duplo álbum "Electric Lady Land".
Naquele tempo começou a surgir o que mais tarde se viria a chamar "rock- progressivo". Mas, na altura, ainda ninguém sabia…
Nesse tempo os "King Crimson" eram o máximo. "In The Court of The Crimson King" e "In The Wake of Poseidon", dois álbuns sucessivos de 1969, são obras de culto absoluto. A exploração até ao limite do "mellotron", um sintetizador analógico que nos faz navegar na profundidade do "twillight zone"; a viola ácida do Robert Fripp, sempre no contraponto; a subtileza do baterista Michael Giles; as flautas cristalinas do Ian McDonald e do Mel Colins; o baixo em suspensão do Greg Lake; as líricas extralúcidas do Pete Sienfield - "… you don't possess me, don't impress me, just upset my mind. Can't instruct me or conduct me, just use up my time…". Os "King Crimson" faziam-nos sonhar com mundos para lá da existência e, ao mesmo tempo, puxavam-nos para a realidade de um cruel quotidiano futurista, bem expresso em "21st Century Schizoid Man".
Nesse tempo os "Soft Machine", o principal grupo da chamada "onda de Canterbury", interpretavam um cool-psicadélico, jazzístico e experimentalista. Perturbavam pela crueza diletante, pela intelectualização dos compassos ímpares. O órgão saturado de "fuzz" do Mike Ratlegde e a voz abstracta do baterista Robert Wyatt no irrepetível "Moon in June": "On a dilema between what I need and what I just want/Between your thights I feel a sensation/How long can I resist the temptation?". A voz era tão rouca e tímida, a música tão inesperada que nunca ninguém percebeu que eram apenas dezanove minutos de puro romantismo!
Com os "King Crimson" aprendemos a intelectualização sinfónica da harmonia. Com os "Soft Machine" a diletância abstracta do compasso psicadélico.
Nessa altura os "Genesis" eram, para nós, apenas comerciais… Os "Gentle Giant", insuportáveis de barroco… Os "Jethro Tull" roçaram a genialidade antes de se converterem ao narcisismo crescente do vocalista-flautista Ian Andersen… Os "Emmerson, Lake and Palmer" falharam a recriação de um super-grupo “tipo Cream". Ficou para a posteridade o solo de "moog" do Keith Emmerson na música "Lucky Man"… Os "Yes" eram o nosso ódio de estimação.
Para aliviar de tanto "progressivo" ouvia-se "Crosby, Stills and Nash", repetindo até à exaustão uma das melhores músicas de sempre: "Wooden Ships", um hino ao largar as amarras, à indiferença pela vida quadrada a que nos queriam condenar: "… we are leaving, you don`t need us… and it`s a fair wind, blowin`warm out of the south over my shoulder. Guess I`ll set the a course and go". Detestei quando deixaram entrar o histérico Neil Yong para o grupo!
Ouvia-se Miles Davis, Herbie Hancock, Chick Corea, Stanley Clark e tantos outros que penetravam o jazz com sons de rock, baralhando "standards", confundindo críticos e criando o jazz-rock. "In a Silent Way", do Miles, era o disco padrão da nova sonoridade. Totalmente cool, hipnótico, astral: “Shh… peaceful!”. Sempre novo... sempre diferente.
Esporadicamente, entrava-se numa mais radical ao som do free-psicadélico de Sun Ra, músico nascido em Saturno, de que nunca se soube a idade, apenas o signo: Gémeos! Sun Ra tocava "órgão de luzes", com a sua "Solar Arquestra", toda ela vinda do infinito intergalático, batucando furiosamente percussão africana e parando subitamente a meio da performance para gritar tribalmente: "Space is the place".
Às vezes ouviam-se coisas verdadeiramente avançadas. Discos comprados na Buchholz, ali na Duque de Palmela, refúgio para quem não queria mais do mesmo. Pierre Henri, o pai da música computorizado e samplada, esteve na origem de toda a música sintetizada. Acabou por ter como descendência o bacoco Jean-Michel Jarre e o vomídrico Vangelis. Pobre homem, não merecia isto!
Em 1972, a Fundação Gulbenkian trouxe as "Percussões de Estrasburgo". Dez músicos em gola alta num concretismo xenaquiano. Despojamento de harmonia… Desprezo pela melodia… Vitória do tempo sobre o espaço. Orgia de percussão: vibrafones, metalofones, marimbofones, xilofones e tubular bells; gongos, triângulos e cymbals; chapas, bidons e frigideiras; tarolas, timpani, bombos, surdos e bongós; caixas, blocos e maracas; congas, tímbalos e dharabocas... Nunca mais quis ser outra coisa senão eterno batedor, feiticeiro da tribo!
O Brasil também passou a fazer parte de nós: Gilberto Gil para excitar; Caetano Veloso para sonhar; Chico Buarque para sofrer. Especialmente ouvido era o álbum "Caetano e Chico Juntos e ao Vivo", com o arrepiante tema lisérgico "Janelas Abertas Nº2", onde o Caetano, cantado pelo Chico, "… poderia perder as paredes aparentes do edíficio; penetrar no labirinto de labirintos dentro do apartamento; em cada quarto rever a mobília; em cada um matar um membro da família…", mas prefere "abrir as janelas p`ra que entrem todos os insectos". Este disco foi, aliás, um dos maiores responsáveis por mais tarde virmos a cantar em português.
O falecido Frank Zappa, no seu estilo inclassificável, estava sempre presente. Muito ouvido era o mítico álbum "Weasels Ripped My Flash", com o seu penetrante tema "My Guitar Wants To Kill Your Mama", ou o clássico "Prelude To The Afternoon Of Sexually Aroused Gas Mask". O velho L.P. "Hot Rats" mantinha-se activo com o inimitável instrumental "Peaches In Regalia". Os mais recentes "Over-nite Sensation" e "Apostrophe" quase não saiam do "pick-up". E como diria romanticamente Frank Zappa: "… I`ll ignore your sheap aroma / I just put you in a coma / with some dirty love / that dirty love"… frase absolutamente recomendada para o "dia dos namorados".
Com o seu humor perverso e viola desconcertante, Zappa representava o espírito da época: a desbunda totalmente organizada, inteiramente escrita, rigorosamente executada, loucamente encenada, politicamente anarquizada. Com ele aprendemos que até para fazer ruído é preciso ensaiar muito!
Foi nesta caldeta musical que os "Ephedra" nasceram, com mais uma pitada de "malhão, malhão", um cheirinho de fado vadio e um toque de "coladera".
As bandas fugiam ao som estereotipado dos "Beatles" e "Rolling Stones", passando rapidamente ao desvario psicadélico dos primeiros "Pink Floyd"; às sessões stonadas dos "Traffic"; ao exotismo narcisista dos "Jefferson Airplane"; ao "acid rock" dos "Grateful Dead"; à desbunda organizada dos "Mothers of Invention". De repente a música pop deixou de ser em três acordes em compasso quaternário. O refrão deixou de ser essencial. A melodia não era para assobiar.
Naquele tempo o rock queria ser jazz e o jazz tentava ser rock. Época de transição, de perturbação geracional… Época de mudança!
Naquele tempo o Sid Barrett, fundador e mentor dos "Pink Floyd", estava já internado depois de ter alucinogenado tudo de uma só vez no primeiro álbum "Piper At The Gates Of Dawn", de 1967, relegando-nos para sempre no seu "Astronomy Domine". Morreu autista em 2006. "Wish you where here…"!
Naquele tempo "The Doors" estavam prestes a perder o carismático sexista Jim Morrison, falecido em 1971, deixando-nos, paradoxalmente, o duplo álbum "Absolutely Live" para celebrar o Lagarto… A Janis Joplin já tinha apanhado a overdose eterna, levando consigo o grito rouco da rebeldia e inconformismo… O Jimi Hendrix levitava nos mundos paralelos do "wah-wah", deixando-nos intrigados com "1983… (A Merman I Should Turn To Be)", do duplo álbum "Electric Lady Land".
Naquele tempo começou a surgir o que mais tarde se viria a chamar "rock- progressivo". Mas, na altura, ainda ninguém sabia…
Nesse tempo os "King Crimson" eram o máximo. "In The Court of The Crimson King" e "In The Wake of Poseidon", dois álbuns sucessivos de 1969, são obras de culto absoluto. A exploração até ao limite do "mellotron", um sintetizador analógico que nos faz navegar na profundidade do "twillight zone"; a viola ácida do Robert Fripp, sempre no contraponto; a subtileza do baterista Michael Giles; as flautas cristalinas do Ian McDonald e do Mel Colins; o baixo em suspensão do Greg Lake; as líricas extralúcidas do Pete Sienfield - "… you don't possess me, don't impress me, just upset my mind. Can't instruct me or conduct me, just use up my time…". Os "King Crimson" faziam-nos sonhar com mundos para lá da existência e, ao mesmo tempo, puxavam-nos para a realidade de um cruel quotidiano futurista, bem expresso em "21st Century Schizoid Man".
Nesse tempo os "Soft Machine", o principal grupo da chamada "onda de Canterbury", interpretavam um cool-psicadélico, jazzístico e experimentalista. Perturbavam pela crueza diletante, pela intelectualização dos compassos ímpares. O órgão saturado de "fuzz" do Mike Ratlegde e a voz abstracta do baterista Robert Wyatt no irrepetível "Moon in June": "On a dilema between what I need and what I just want/Between your thights I feel a sensation/How long can I resist the temptation?". A voz era tão rouca e tímida, a música tão inesperada que nunca ninguém percebeu que eram apenas dezanove minutos de puro romantismo!
Com os "King Crimson" aprendemos a intelectualização sinfónica da harmonia. Com os "Soft Machine" a diletância abstracta do compasso psicadélico.
Nessa altura os "Genesis" eram, para nós, apenas comerciais… Os "Gentle Giant", insuportáveis de barroco… Os "Jethro Tull" roçaram a genialidade antes de se converterem ao narcisismo crescente do vocalista-flautista Ian Andersen… Os "Emmerson, Lake and Palmer" falharam a recriação de um super-grupo “tipo Cream". Ficou para a posteridade o solo de "moog" do Keith Emmerson na música "Lucky Man"… Os "Yes" eram o nosso ódio de estimação.
Para aliviar de tanto "progressivo" ouvia-se "Crosby, Stills and Nash", repetindo até à exaustão uma das melhores músicas de sempre: "Wooden Ships", um hino ao largar as amarras, à indiferença pela vida quadrada a que nos queriam condenar: "… we are leaving, you don`t need us… and it`s a fair wind, blowin`warm out of the south over my shoulder. Guess I`ll set the a course and go". Detestei quando deixaram entrar o histérico Neil Yong para o grupo!
Ouvia-se Miles Davis, Herbie Hancock, Chick Corea, Stanley Clark e tantos outros que penetravam o jazz com sons de rock, baralhando "standards", confundindo críticos e criando o jazz-rock. "In a Silent Way", do Miles, era o disco padrão da nova sonoridade. Totalmente cool, hipnótico, astral: “Shh… peaceful!”. Sempre novo... sempre diferente.
Esporadicamente, entrava-se numa mais radical ao som do free-psicadélico de Sun Ra, músico nascido em Saturno, de que nunca se soube a idade, apenas o signo: Gémeos! Sun Ra tocava "órgão de luzes", com a sua "Solar Arquestra", toda ela vinda do infinito intergalático, batucando furiosamente percussão africana e parando subitamente a meio da performance para gritar tribalmente: "Space is the place".
Às vezes ouviam-se coisas verdadeiramente avançadas. Discos comprados na Buchholz, ali na Duque de Palmela, refúgio para quem não queria mais do mesmo. Pierre Henri, o pai da música computorizado e samplada, esteve na origem de toda a música sintetizada. Acabou por ter como descendência o bacoco Jean-Michel Jarre e o vomídrico Vangelis. Pobre homem, não merecia isto!
Em 1972, a Fundação Gulbenkian trouxe as "Percussões de Estrasburgo". Dez músicos em gola alta num concretismo xenaquiano. Despojamento de harmonia… Desprezo pela melodia… Vitória do tempo sobre o espaço. Orgia de percussão: vibrafones, metalofones, marimbofones, xilofones e tubular bells; gongos, triângulos e cymbals; chapas, bidons e frigideiras; tarolas, timpani, bombos, surdos e bongós; caixas, blocos e maracas; congas, tímbalos e dharabocas... Nunca mais quis ser outra coisa senão eterno batedor, feiticeiro da tribo!
O Brasil também passou a fazer parte de nós: Gilberto Gil para excitar; Caetano Veloso para sonhar; Chico Buarque para sofrer. Especialmente ouvido era o álbum "Caetano e Chico Juntos e ao Vivo", com o arrepiante tema lisérgico "Janelas Abertas Nº2", onde o Caetano, cantado pelo Chico, "… poderia perder as paredes aparentes do edíficio; penetrar no labirinto de labirintos dentro do apartamento; em cada quarto rever a mobília; em cada um matar um membro da família…", mas prefere "abrir as janelas p`ra que entrem todos os insectos". Este disco foi, aliás, um dos maiores responsáveis por mais tarde virmos a cantar em português.
O falecido Frank Zappa, no seu estilo inclassificável, estava sempre presente. Muito ouvido era o mítico álbum "Weasels Ripped My Flash", com o seu penetrante tema "My Guitar Wants To Kill Your Mama", ou o clássico "Prelude To The Afternoon Of Sexually Aroused Gas Mask". O velho L.P. "Hot Rats" mantinha-se activo com o inimitável instrumental "Peaches In Regalia". Os mais recentes "Over-nite Sensation" e "Apostrophe" quase não saiam do "pick-up". E como diria romanticamente Frank Zappa: "… I`ll ignore your sheap aroma / I just put you in a coma / with some dirty love / that dirty love"… frase absolutamente recomendada para o "dia dos namorados".
Com o seu humor perverso e viola desconcertante, Zappa representava o espírito da época: a desbunda totalmente organizada, inteiramente escrita, rigorosamente executada, loucamente encenada, politicamente anarquizada. Com ele aprendemos que até para fazer ruído é preciso ensaiar muito!
Foi nesta caldeta musical que os "Ephedra" nasceram, com mais uma pitada de "malhão, malhão", um cheirinho de fado vadio e um toque de "coladera".
jp
Tenho vindo a publicar, on-line e em episódios, o meu livro "Filhos do Povo do Sul - Memórias de uma Banda Rock dos Anos 70". Costuma ser às segundas-feiras. Desta vez sai ao sábado, porque a partir de amanhã vou estar ausente da net. Aproveito para publicar um episódio mais longo para se entreterem durante a semana.
2 comments:
Não gostavas dos "Yes"?
"Down at the edge, round by the corner.
Close to the end, down by a river.
Seasons will pass you by.
I get up, I get down"
Ah, muita lucy...
Era um "ódio de estimação". Coisas irracionais!
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