2.6.08

FILHOS DO POVO DO SUL - V

Duas horas da tarde. Casa do Rodrigo. Dia frio de Outono. Abrimos. Carta da Holanda. Cortámos em quadrados o mata-borrão embebido em ácido lisérgico. Engolimos o papel à força de água. Éramos cinco. Um tinha flipado há poucos meses. Estava proibido pelo médico. Dose reforçada para os outros quatro. Partimos no azul ultramarino do meu Datsun 1200, rumo a Monserrate…
De repente fiquei sozinho no labirinto vivo de uma interminável teia de bambus surgidos do nada. Tentáculos verdes expandiam-se para me envolver. Dédalos crispados abriam-se para me engolir. Perdi-me em corredores sem fim que se transfiguravam a cada passo. Entrevi lagos flamejantes de roxo ondulante. Vi fendas rasgadas que me puxavam à "terra oca". Monstros reptilóides trespassavam-me soprados pelo vento que só eu sentia. Nuvens coloridas cobriam o céu lilás entre camadas sobrepostas de moléculas hexagonais. Percorri a eternidade, senti a morte, vi a salvação e, por fim, desci ao alcatrão. A estrada abriu-se com estrondo debaixo dos meus pés. Vi-me em esqueleto lá em baixo chamando pelo meu corpo. Fugi soterrado de pânico, enquanto pedras vivas me cercavam com olhar assassino. Comecei a esbracejar por enfermeiras, batas brancas, ambulâncias, hospitais… alguém que me tirasse dali.
O resto do grupo andava perdido lá por cima, devastando a pontapé árvores putrefactas que escorriam coxas de frango cor-de-laranja vivo infestadas de vermes funerários… O Paulo na sua labita luterana com olhar interrogativo de quem procura a Verdade… O Rodrigo com ar dominador de macho alfa, também procurando a Verdade… A Isabel rindo-se nervosamente de si mesmo, esquecida da Verdade… O Marcial p'ra lá da Verdade… E eu de blusão azul claro e gola branca de pele sintética, qual "rei virgem" da Baviera, correndo alucinado de encontro às próprias trevas que, naquele momento, eram a minha única Verdade.
Em pânico total refugiei-me no carro… Pior não podia ter sido. Entrei imediatamente num filme claustrofóbico de acidente rodoviário grave. Os minúsculos grãos de pó depositados no tablier aumentaram desmesuradamente de tamanho, como se o carro tivesse acabado de sofrer um despiste violento. O volante contorcia-se com vontade própria… A "manette" das mudanças desfazia-se ao mínimo contacto… Os pedais eram degraus para o infinito. O crepúsculo outonal descia rapidamente nas sombras ominosas da Serra de Sintra trazendo todos os meus fantasmas sem sossego!
Finalmente o Rodrigo acertou com a chave na ignição e partimos estrada fora rumo ao desconhecido que éramos nós próprios. Ainda hoje acho que me salvou a vida!
Berrei o tempo todo. Os carros passavam por cima de nós em contramão, provocando dezenas de acidentes mortais sucessivos de que só escapámos graças ao poder mágico do L.S.D. Por fim alguém se lembrou de acender um charro para acalmar e, com um par de estalos, obrigaram-me a fechar os olhos com toda a força.
Naquele dia tive medo, muito medo. Morri várias vezes e ainda hoje morro. Morro todos os dias e continuo a ter medo. Naquele dia, por manifesta falta de preparação, perdi a oportunidade de enfrentar o meu primeiro inimigo: o Medo. Ainda hoje luto com ele. Ainda hoje o tento dominar!
jp
Uma irritante avaria no acesso à net impediu-me de manter contacto desde 5ªfeira.

5 comments:

Anonymous said...

nunca consegui perceber muito bem o porquê o como e o para quê destas experiencias, o que nos tràs de novo? seria a novidade?, já dantes não percebia e agora muito menos

ortega said...

A curiosidade é fodida, literalmente. A memória também

Anonymous said...

Pois, as drogas são uma experiência fantástica mas não são para todos. Como dizia Nietzsche "que tenha asas, quem sonda os abismos".

Claire-Françoise Fressynet said...

As fotos e as histórias que contas fazem-me balançar para o passado imergido na minha memória, e até tenho tido sonhos, e agora lembrei-me dos livros do Castaneda que li quando fui ao México.

Jorge Pinheiro said...

Esta do Medo vem directa do Carlos Castaneda.