15.6.08

NO REINO DO VARAL

Lá no alto o Castelo de S. Jorge vigiando Lisboa, despenhando-se sobre um Tejo manso que se alarga desmesuradamente no Mar da Palha. Ruelas mouras descendo a pique sobre a Praça da Figueira, onde, na sua rigidez de bronze, D. João I, Mestre de Avis, olha altivo os súbditos que passam. Para sul estende-se a Baixa, cartesianamente desenhada pelos arquitectos maçons do Marquês de Pombal. Lisboa nunca perderá a memória desse terramoto de 1755. Ele está por todo o lado. Nos restos intactos da Sé e no ouro refulgente da Igreja de S. Roque que sobreviveram ao inferno. Nas ruínas do Carmo e da Trindade que ainda hoje, a céu aberto, testemunham a violência do abalo. Na destruição do Terreiro do Paço, soterrado por ondas de 30 metros. No incêndio do Bairro Alto que devastou a “Sétima Colina”. Lisboa de hoje respira aliviada a catástrofe passada, na angústia anunciada do próximo cataclismo.
Uma pequena rua movimentada e de comércio duvidoso leva-nos da Praça da Figueira ao Largo Martin Moniz. Regressamos às longínquas memórias da reconquista cristã. Em 1147 Afonso Henriques cercou Lisboa que nessa época se chamava Ashbouna. A conquista só foi possível porque o cavaleiro Martin Moniz, durante uma refrega, se atravessou numa porta impedindo que esta se fechasse. A porta tem o nome da lenda e o cavaleiro não teve hipótese de inaugurar o busto comemorativo, por manifesta falta de saúde. Em compensação deram-lhe um largo só para ele. O Largo Martin Moniz! Só para ele e para centenas de guineenses, angolanos, cabo-verdianos, muçulmanos, sikhs, brasileiros, chineses, ucranianos, pretos, brancos, mulatos… O Largo Martin Moniz é o largo mais global de Portugal. Aqui se encontram todos os dias gentes das mais desvairadas partes do mundo. Gentes desta Lisboa que sempre teve as portas abertas ao multi-culturalismo. E que melhor homenagem prestar a Martin Moniz, esse homem altamente especializado em abrir portas? Passam turbantes em vestes brancas; djelabahs castanhas em babuchas de cerimónia; senhores de gravata; saris; burkas; cabaias; panos coloridas dos calores tropicais. Babilónia de línguas. Restos do Império. Prenúncio da globalização total. Lojas obscuras em centros comerciais labirínticos, onde se pode comprar o autêntico “pau-de-Cabinda; o verdadeiro caril de Madrasta; a noz-moscada das Molucas; a malagueta de Benguela; a pimenta de Ceilão. Espaço multicultural, bem no centro de Lisboa. Um espaço perdido na memória colectiva que todos os dias viaja muito além da Taprobana.
Pois foi precisamente ali que o Eduardo decidiu ficar instalado, num hotel que, muito apropriadamente, se chama Hotel Mundial. Encontrar o Eduardo neste global universo mundial não parecia tarefa fácil, se considerarmos que nunca o tinha visto. O encontro fora marcado através do blogue “Varal de Ideias”, de que o Eduardo é autor e animador, lá no longínquo Piacaba, em Santa Catarina, no sul do Brasil. Varal é estendal. Ambos somos loucos por molas e pregadores com coisas penduradas. E, acreditem, pode-se pendurar quase tudo, desde que a mola aguente!
Dezanove horas em ponto. Do quarto ninguém atende. Dou três voltas ao bar de ouvido apurado. Alguém me chama. Era ele. Era assim que o imaginava. Talvez mais baixo. Óptimo aspecto. Ar calmo de quem gosta de ouvir. Ainda bem, porque eu gosto de falar!
Sentada numa mesa do bar, lá estava a Paula. Dois “blogueiros” recém apresentados discutiam, por entre caipirinhas de ocasião, esta estranha forma de vida, esta nova forma de travar conhecimento. Viajamos com os blogues, por causa dos blogues, para os blogues.
Subimos a São Cristóvão, freguesia centenária, pendurada na colina do Castelo. Os varais invadem a noite no seu movimento pendular, transformando as vielas nas velas de um oceano por navegar. São dezenas de estendais que nos saúdam, como se soubessem da nossa paixão. Acenam de longe, garbosos da sua brancura, sussurrando, “Olhem para mim. Eu sou o Varal do Mês!”. Aqui tudo é possível. Estamos no “Reino do Varal”!
Travessa da Farinha. “Cantina Baldraca”. Comida italiana de excelente qualidade, exclusivamente à base de massas, confeccionadas na casa. Decoração despojada. Luz coada. Serviço descontraído e simpático. Fomos os primeiros. Em Lisboa ninguém janta fora antes das dez da noite!
À minha frente a Paula e o Eduardo. Que tínhamos em comum, para além de falarmos português, gostarmos de varais e termos blogues? Em breve iria descobrir!
Descobrir que o Atlântico separa o que devia unir. Descobrir que raízes comuns e uma língua comum conferem uma base de entendimento únicos que não podemos malbaratar. Que não somos estrangeiros uns dos outros. Que temos uma enorme curiosidade em conhecer as vivências de cada um. Descobrir que precisamos de nos revisitar para melhor nos entendermos.
Paula é uma mulher bonita, interessante, ponderada e urbana. Mulher que sabe o quer. Pareceu-me feliz. De uma felicidade que irradia com discrição, com distinção. Eduardo é mais reservado e observador. Sabe ouvir mas, quando fala, é assertivo e entusiasta. Um filósofo. Prefere o seu isolamento artístico em Piacaba, num paraíso que criou, feito dos sonhos de uma vida. Um mundo que construiu para si próprio e que partilha com os amigos. Aliás, partilhar é uma palavra-chave na vida de Eduardo. Ele sabe deixar os outros brilhar e ao fazê-lo brilha também.
Tive inveja desse mundo litoral, vagamente selvagem, totalmente desconhecido para mim. Tive admiração pela tenacidade em o criar. Pela vontade de o ter. Pela persistência em o manter. Pela audácia em o viver.
Enquanto Eduardo explicava na toalha de papel as origens italianas do seu apelido, a noite acabou com uma rapidez surpreendente. A conversa ficou adiada. Suspensa. Interrompida. Faltou dizer quase tudo. Tudo o resto que não se disse. Tudo o que as palavras não contam. Tudo o que só o tempo permite saber.
Naquela noite descobri que cada vida é uma descoberta, mesmo que seja um “achamento” acidental na “net”. Descobri que vale a pena navegar e ver do mar tanta terra por descobrir.
Desafio mútuo na sequência do encontro entre Varal de Ideias e Expresso da Linha no passado dia 27 de Maio, em Lisboa. Uma foto, um texto e um abraço transatlântico.
jp

6 comments:

Anonymous said...

Agradeço o TRANSATLANTICO abraço e retribuo. Se contar parece mentira, mas a IMAGEM escolhida, era você fotografando a toalha da mesa, com o rosto da Fernanda no seu ombro, super interessada na imagem que você estava capturando. Uma pena ter DESAPARECIDO! Mas pelo texto você GANHOU o DESAFIO.
Me rendo!

Abração!

Jorge Pinheiro said...

Ninguém vence. Quem vence é a amizade. Vou postar mais umas fotos daquele dia.
Abraço grande.

Anonymous said...

Jorge,

você que gosta TAMBÉM de varais, não sei se conhece o BLOCO DE NOTAS do Claudio Versiani :
http://www.picturapixel.com/blog/

Vale a pena pelas suas fotos, e imagens de terceiros.

Abçs

Claire-Françoise Fressynet said...

Boas noticias, estava curiosa de saber como tinha acontecido.

Anonymous said...

Lindo texto, belo encontro.
abraço

Jorge Pinheiro said...

Foi um belo encontro que não vamos deixar esbater. Estamos a preparar novas ideias...