22.7.08

2020 - ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

O autocarro coreano de sightseeing deslizava suavemente no ar climatizado de fabrico chinês pela Avenida dos Descobrimentos abaixo. Ao fundo a Torre de Belém no seu calcário rendilhado, contrastando com o Tejo azul em cenário quinhentista. O Padrão, com os seus navegadores monolíticos, lembrando velhas glórias do Império. À volta hotéis de 6 e 7 estrelas, olhando o rio a preços asiáticos, vedados por cercas electrificadas e seguranças nipónicos de face samurai.
Dentro do autocarro, um grupo de indianos risonhos comenta que dali tinha saído o Vasco da Gama, o tal que os tinha invadido. E riam alarvemente. No piso de baixo, um grupo de chineses barulhentos tira fotografias a tudo o que mexe. Lá atrás, duas famílias de angolanos disfarçam as origens falando em bantu. Meia dúzia de brasileiros põe a hipótese de explorar comercialmente o decadente Mosteiro dos Jerónimos.
Lá fora, no calor do meio-dia, pobres turistas alemães e suecos confraternizam à volta das mesas de pic-nic, compartilhando as sandes de fiambre que sobraram da véspera. Portugueses esfarrapados, pedem pelos cantos tocando acordeâo e lançando fados vadios com tradução em mandarim. Um bando de espanhóis dança o fandango a pedido. No átrio central da Praça do Império o Presidente da Repúbica faz uma "presidência aberta", para turista ver.
A camioneta chega, finalmente, ao Rossio. A guia diz nas três línguas oficiais, mandarim, brasileiro e inglês do Ragistão: "Chegámos ao fim da nossa viagem. Toda a zona a norte e leste não é segura. É habitada por portugueses e outros marginais que aqui se estabeleceram no tempo da União Europeia. Por favor não se percam do vosso guia".
jp

9 comments:

Anonymous said...

Como esqueleto de um argumento para o teu próximo filme, está muito bom. Para te ajudar na inspiração/transpiração aconselho-te: "Escape from New York" de John Carpenter - 1981 e "Brazil" de Terry Gilliam - 1985. Entre estes cenários apocalípticos e o teu, venha o diabo e escolha. Olha lá, não podias pôr a coisa lá para 2100 ou coisa assim?

Francine Esqueda said...

Olá?!!! Estou passando por aqui de teimosa! Ontem passei por uma pequena cirurgia e deveria repousar total! Mas, não resisti:
Vim dizer um "oi" e dar uma bisbilhotadinha!...
AQUI CADA BISBILHOTADA VALE OURO!
Beijos e mais beijos...

Isabel Magalhães said...

Um verdadeiro filme de TERROR, sério candidato a um homenzinho dourado, principalmente por se tratar de um cenário com imensas probabilidades de ser real.

Também proponho que a data seja mudada para daqui a uns cem anos... :D

Anonymous said...

Ah, ah, excelente. Os turistas, com as devidas excessões, são os hunos de nossa era. E vai piorar.

Silvares said...

Adorei, adorei, aaaaaaadorei, como diria o João César Monteiro, que Deus guarde numa boa gavetinha. Quando comecei a ler não estava a ver bem o filme, depois dei com um sorriso nos lábios. Penso que amarelo, como convém.

Anonymous said...

Ótimo texto ( como sempre ) e delicioso o comentário do Silvares. Sorriso amarelo!

Jorge Pinheiro said...

Os "novos ricos" estão a chegar... E, francamente, acho que mais cedo do que os "ocidentais" tinham previsto.

Anonymous said...

Ah, enfim, estou a reconhecer o Arnaldo Sem Tempo.
Receava que o personagem tivesse desistido das suas transumancias.
Tem demasiado conteúdo para desaparecer de vez.

Jorge Pinheiro said...

Pois é, mas esta é outra história, caro Antonião.