5.8.08

FORTE DE S. LOURENÇO DA CABEÇA SECA

Bem no meio do mar, ali na linha imaginária onde o Tejo desagua na sua foz larga e deslumbrante, dominando as margens direita e esquerda, fica o Forte de S. Lourenço da Cabeça Seca, vulgarmente conhecido por Bugio (62 metros de diâmetro externo; 16 metros de altura na torre).
Para quem mora em Oeiras há 46 anos, é um escândalo não conhecer o Bugio, esse ícone da barra, ancorado no meio do rio e inacessível por todos os lados. Um Bugio que à noite nos vem visitar em raios verdes e vermelhos de farol, assombrando os nossos sonhos angustiados de naufrágios imaginários.
Pois a verdade é que esta foi a primeira vez em que lá estive desde a última em lá fui (como diria o saudoso e arguto Presidente Américo Tomaz). Umas boas 5 milhas de saltos marítimos em botes de borracha a quatrocentos cavalos à hora e chegamos confortavelmente encharcados ao rochedo que parece flutuar no meio das vagas. Uma espécie de Alcatraz de Lisboa, com uma grande diferença: aqui não há rocha para construir... só areia!
O areal da Cabeça Seca, nos anos de 1500, estendia-se, perfeitamente consolidado, até à "outra banda", por alturas da Cova do Vapor. Aproveitando os progressos da piro-balística, em 1571, Francisco de Holanda propõe a D. Sebastião a construção de um forte que, cruzando fogo com a Torre de S. Gião, na margem direita (hoje Forte de S. Julião da Barra e que se pode ver no post do Moinho de Maré), impediria qualquer frota de invadir Lisboa. O projecto teve real acolhimento e as obras começaram. Inicialmente não era para ser de pedra, mas em madeira.
Com a chegada de Filipe I, os fortes da barra foram reforçados, pois a ameaça agora era maior. Aos inimigos de Portugal, somavam-se agora os inimigos de Castela. O projecto prosseguiu, chegando a existir uma estrura em madeira.
Em 1590, porém, o arquitecto italiano Casalle, propõe uma construção em pedra. Como não é possível construir pedra em cima de areia, foi preciso enterrar estacas no fundo do rio, formando um largo círculo que depois foi enchido com pedras atiradas lá para dentro, "as pedras perdidas", como ficaram conhecidas. Essas pedras tinham de ser retiradas do fundo do rio (que ali já é mar), para melhor consolidar. Tal só era possível na vazante e havendo maré viva, para as águas descerem suficientemente. Depois houve que consolidar as pedras com argamaça. Foi a primeira vez no mundo que se utilizou argamaça dentro de um meio salinizado.
O projecto previa conclusão em 3 anos...! Em 1610 ainda se trabalhava debaixo de água. Em 1643 começava a construção acimada linha de água. O novo arquitecto que dirigia as obras, Torreano, fez alterações, entre as quais a construção de uma cistena. Até aí o abastecimento era em barricas! A estrutura central passou a ter uma cisterna em baixo e por cima foi construído o farol que não estava inicialmente previsto.
Em 1656 ficou, finalmente, construído. Durou pouco. O terramoto de 1755 e o tsunami subsequente derrubaram a torre e rebentaram com o forte.
Reconstruído, ganhou capela, cozinha e armazéns. Durante as lutas liberais (por volta de 1830) estiveram aqui aquartelados cerca de 150 soldados. Um excesso de população, numa área claustrofóbia e de operacionalidade muito relativa.
Deixou de ter interesse defensivo no final do séc. XIX (se é que alguma vez o teve). Passou a ser exclusivamente farol. Primeiro, famílias de faroleiros moravam na "ilha" vidas de solidão. A partir de 1960 passou a haver turnos de 4 em 4 dias. Desde 1982 o farol é automático. Ninguém lá mora. A degradação é um risco evidente e notório. Várias entidades disputam a tutela do local, hoje como no passado. No passado, a marinha e exército arrogavam-se tutelar o Bugio, naquilo que ficou conhecida como a guerra "do biscoito ou da conserva". Um decreto real acabou com a disputa, declarando formalmente que o forte "É uma nau surta (ancorada) no Tejo", ficando, assim, sob a alçada da Marinha. Talvez seja necessário fazer o mesmo, para dirimir a luta de competências negativas entre entidades e autarquias que querem aquela jangada de pedra.
jp
A visita foi efectuada no âmbito das actividades da "Associação Espaço e Memória", aqui de Oeiras. A história foi foi contada pelo seu Presidente, Joaquim Boiça, filho de faroleiro e que esteve muitas vezes aqui com o pai. Acaba de publicar um livro sobre o Bugio.


12 comments:

roserouge said...

Muito bom, este post. Deixa-me só acrescentar que, apesar de se terem construído alguns fortes ao longo da costa Lisboa-Cascais com o intuito de nos defendermos de eventuais ataques por mar, isto nunca aconteceu. Lisboa nunca foi atacada por mar. Mas os fortes são lindos!

Anonymous said...

Corrige já inacessível. Depois continuo a ler...

GUGA ALAYON said...

"Eram os Deuses astronautas Portugueses?"
BELEZA

Silvares said...

Agora compreendo a razão porque as obras públicas no nosso querido Portugal duram sempre muito mais tempo que o inicialmente contado. Já é tradição. Imagino que o orçamento previsto tenha disparado aí uns 10mil%.

Cleopatra said...

Qdo eu era miúda, havia uma passagem de areia com maré vazia.... uma tentação... Depois era preciso esperar a próxima maré.

Anonymous said...

Ótima postagem, como disse a Rose! O Jorge é mestre nessas HISTÓRIAS HISTÓRICAS!

Jorge Pinheiro said...

Curioso. Ninguém perguntou porque se chama Bugio!
Há várias teses das quais relevo duas: uma tese diz que vem do francês "bougie" (vela), dada a forma de castiçal, com o farol em cima; a outra, diz que vem de "bugio", termo galego que significa vigia. Voto no segundo!

José Louro said...

Excelente. Só uma pergunta: como trabalhavam os pobres operários debaixo de água?

Jorge Pinheiro said...

Creio que eles nunca trabalharam debaixo de água. Na altura da construção o areal ia da "outra margem" até ao local do Bugio. Depois, bem mais tarde, é que abriu completamente o canal e desapareceu a areia.

Ví Leardi said...

Muito bom poder conhecer mais um pouco desta tua linda terra...
Agora...porque será que sempre em detrimento das nossas próprias belezas saímos mais pelo mundo afora...Conheço pouco deste imenso e lindo Brasil...bom como dizem ..a galinha do vizinho é....!
Bj

Jorge Pinheiro said...

Mas o Brasil é mesmo imenso...

Anonymous said...

cresci a ver o bugio. vivo na linha, posso dizer que tenho o previlegio de o visitar todas as semanas, visto que passo noites ali à pesca. E posso dizer também que é bastante nostalgico e misterioso. Para além do mar de sargos e robalos.