Para além de um par de duvidosos milagres, pouco se sabe da vida do santo, mas da morte, sim. Foi em 44 d.C. Estava Tiago em Jerusalém, sossegadamente a comer o cordeiro pascal, quando Heródes Agripa I o manda prender e executar, sem mais nem menos. Em Roma era Imperador o coxo Cláudio.
Com raro sentido de oportunidade, Tiago foi o primeiro apóstolo a derramar sangue em nome da fidelidade a Jesus. Outros se seguiriam, dando à seita uma dimensão mediática que nunca teria tido, não fossem os litros de sangue vertidos e a incapacidade dos romanos em, pela primeira vez, lidarem com uma questão religiosa. De facto, eles não estavam preparados para absorver religiões monoteístas. Na sua mente pragmática, um único Deus confundia-se com César e, consequentemente, representava uma ameaça ao Império já que negava a divindade do imperador.
Só muito mais tarde (séc. IV), Constantino, com o Império à beira da desagregação, percebeu as vantagens unificadoras da nova religião. A fé cristã passou a estar associada ao poder temporal, participando activamente da ordem política. O imperador prescindiu da sua natureza divina e passou a ser, modestamente, apenas uma “pessoa sagrada”.
Pois, mas em 44 ainda o Império Romano não tinha percebido. Com a execução de Tiago, começa a lenda. “O corpo inteiro, com a cabeça (presume-se decepada), foi levado para fora da cidade para que o devorassem os cães, as aves e as feras”, diz-nos a História Compostelana. Mas, como o apóstolo já tinha estado em Espanha em pregação, os seus discípulos Atanásio e Teodoro pegam no corpo (fica a dúvida quanto à cabeça), enfiam-no num barco guiado por um anjo (como habitualmente neste tipo de salvamentos) e vão por aí fora.
Passam as “Colunas de Hércules”, bordejam a Lusitânia e entram na Ria da Arosa, bem a norte da Galiza, nos domínios da rainha Lupa. Amarram a barca junto a Iria Flavia, numa coluna de pedra que hoje se pode ver por debaixo do altar-mor da igreja de Santiago de Padrón (a pátria dos homónimos pimentos).
Depois de breves disputas com a rainha Lupa, uma aborígene que não estava a ver o potencial turístico da coisa e a habitual derrota de um dragão que por ali andava tresmalhado, os discípulos lá conseguem local para sepultar Tiago (com ou sem cabeça, eis a questão).
Colocam as “relíquias” numa arca de mármore e sobre ela constroem um altar e sobre o altar uma capela e assim sucessivamente, até à edificação total da “Igreja de Pedro” que, não sendo deste mundo, só pode ser galega! Feito isto, foram à vida deles…
O monumento vai ficar abandonado durante séculos, até que, por volta de 813, o eremita Pelayo, um especialista de marketing e homem de grande visão estratégica que por ali andava, alegadamente a pregar aos visigodos (ainda infectados com restos de arianismo), “redescobre” o túmulo no meio do bosque!
Avisa de imediato o bispo, cujo avisa Afonso II, o Casto, rei das Astúrias e todos se precipitam com grande júbilo para o local. Encontram três sepulturas, com os ossos todos à molhada. Mesmo sem qualquer perícia forense, de imediato decidem ser o santo e seus discípulos, não pondo sequer a hipótese de ser também a própria rainha Lupa!
Para completar o golpe publicitário, logo em 844, na batalha de Clavijo, Santiago, montado no seu inseparável cavalo branco, aparece a combater ao lado de Ramiro I contra os muçulmanos, tendo os “infiéis” sido, definitivamente, impedidos de progredir para norte.
Santiago aparece, depois, nas batalhas de Simancas e Ourique. Sempre que era preciso transformar o assassínio em “guerra justa”, lá estava o santo para abençoar. Santiago torna-se, com naturalidade, no padroeiro das Espanhas.
O negócio estava montado. Faltava um "sponsor". Ele veio na pessoa do Imperador Carlos Magno, rei dos Francos. Santiago aparece-lhe insistentemente em sonhos, explicando o simbolismo da Via Láctea e recomendando-lhe que a seguisse para venerar as suas relíquias. O Imperador vai por duas vezes a Compostela dando origem à "peregrinação" e inaugurando oficialmente o chamado "Caminho Francês". Nos dois séculos seguintes, mais de meio milhão de peregrinos vão até lá, dando à cidade uma importância que ela não tinha, passando a competir directa e ostensivamente com Braga, até aí sede religiosa da região galaica-duriense e que hoje não passa da cidade dos arcebispos.
jp
11 comments:
E depois não queriam que as criancinhas ficassem baralhadas... ;)
Confesso que estou com um pouco de vergonha de responder a sua pergunta, mas vamos lá. O "caveirão", como é chamado aqui no Rio, é aquele carro blindado da foto (praticamente um tanque de guerra), que a Polícia Militar usa para entrar nas favelas em momentos de confronto com os traficantes de drogas.
Para mim, ele é o símbolo máximo da vergonha que se transformou essa cidade: morros dominados por traficantes e uma polícia corrupta que precisa utilizar artifícios de exército para entrar nessas localidades. Nessas horas, as imagens são dignas de uma Bagdá. A diferença é só o que motiva a nossa "guerra".
Me dá vontade de chorar de tanta tristeza só de te contar isso. É inacreditável que tenhamos chegado a esse ponto.
De um lado da cidade, como o que eu moro, uma sucessão de imagens de cartão postal e estrutura digna de 1º Mundo. Do outro, não muito distante, o que há de pior na espécie humana. É uma cidade de contrastes assustadores!
Andrea: eu que fico meio embarassado de ter perguntado, mas confesso que não sabia. É a chamada "Força de Elite". filme que anda por aí agora. Se lhe serve de algum consolo, aqui pelos bairros da perferia de Lisboa não há "caveirão", mas começa a haver muita confusão entre gangs e com a polícia. Obrigado pela informação.
Isabel: esta coisa dos santos sempre foi muito complicada. É uma ciência...
E fazem estes turistas quilómetros para encontrar o que está ali... dentro deles.
Gosto desta tua lucidez!
bjs
Tá bem que me deitei hoje muito cedo...de manhã cedo, quero eu dizer, mas não estou maluca estou é um bocadinho baralhada...estes comentários têm alguma coisa a ver com o post? Hã?? Não tenho nada com isso? Ah, bom...
Rose: só o da Andrea é que não tem. É resposta a pergunta que lhe tinha feito no blogue dela.
Quando Atanásio e Teodor chegaram finalmente à Galiza o cadáver do santo devia mandar cá um pivete! Ou talvez não, que nesta coisa dos milagres raramente se fala dos cheiros. Mas é assim que as coisas acontecem. Muitos séculos depois é que acontecem realmente. Nas histórias.
Já percebi, já fui espreitar. Já lá estive e também notei isso.
Silvares: de facto os milagres não cheiram. É da purificação...
Realmente a religião sempre foi usada pelos poderosos como uma forma de validação e justificativa para seus atos que visavam sempre o poder. E isto continua até hoje, não é mesmo?
Abraços e bom domingo.
Maria Augusta: O melhor é exemplo é logo o do Imperador Constantino que validou a religião Católica Apostólica Romana só porque lhe servia os interesses políticos. Se tivesse tomado outra decisão, provavelmente a maioria de nós ainda sacrificava no templo de Júpiter!
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