29.8.08

SANTIAGO DE COMPOSTELA

Como toda a gente que andou na catequese sabe, o apóstolo Jacobus (também conhecido por Iago, Tiago ou Jacques) era filho de Zebedeu e de Salomé e irmão de João “Evangelista”. Costuma ser chamado de Tiago Maior para o distinguir de Tiago Menor, irmão de Jesus.
Para além de um par de duvidosos milagres, pouco se sabe da vida do santo, mas da morte, sim. Foi em 44 d.C. Estava Tiago em Jerusalém, sossegadamente a comer o cordeiro pascal, quando Heródes Agripa I o manda prender e executar, sem mais nem menos. Em Roma era Imperador o coxo Cláudio.
Com raro sentido de oportunidade, Tiago foi o primeiro apóstolo a derramar sangue em nome da fidelidade a Jesus. Outros se seguiriam, dando à seita uma dimensão mediática que nunca teria tido, não fossem os litros de sangue vertidos e a incapacidade dos romanos em, pela primeira vez, lidarem com uma questão religiosa. De facto, eles não estavam preparados para absorver religiões monoteístas. Na sua mente pragmática, um único Deus confundia-se com César e, consequentemente, representava uma ameaça ao Império já que negava a divindade do imperador.
Só muito mais tarde (séc. IV), Constantino, com o Império à beira da desagregação, percebeu as vantagens unificadoras da nova religião. A fé cristã passou a estar associada ao poder temporal, participando activamente da ordem política. O imperador prescindiu da sua natureza divina e passou a ser, modestamente, apenas uma “pessoa sagrada”.
Pois, mas em 44 ainda o Império Romano não tinha percebido. Com a execução de Tiago, começa a lenda. “O corpo inteiro, com a cabeça (presume-se decepada), foi levado para fora da cidade para que o devorassem os cães, as aves e as feras”, diz-nos a História Compostelana. Mas, como o apóstolo já tinha estado em Espanha em pregação, os seus discípulos Atanásio e Teodoro pegam no corpo (fica a dúvida quanto à cabeça), enfiam-no num barco guiado por um anjo (como habitualmente neste tipo de salvamentos) e vão por aí fora.
Passam as “Colunas de Hércules”, bordejam a Lusitânia e entram na Ria da Arosa, bem a norte da Galiza, nos domínios da rainha Lupa. Amarram a barca junto a Iria Flavia, numa coluna de pedra que hoje se pode ver por debaixo do altar-mor da igreja de Santiago de Padrón (a pátria dos homónimos pimentos).
Depois de breves disputas com a rainha Lupa, uma aborígene que não estava a ver o potencial turístico da coisa e a habitual derrota de um dragão que por ali andava tresmalhado, os discípulos lá conseguem local para sepultar Tiago (com ou sem cabeça, eis a questão).
Colocam as “relíquias” numa arca de mármore e sobre ela constroem um altar e sobre o altar uma capela e assim sucessivamente, até à edificação total da “Igreja de Pedro” que, não sendo deste mundo, só pode ser galega! Feito isto, foram à vida deles…

O monumento vai ficar abandonado durante séculos, até que, por volta de 813, o eremita Pelayo, um especialista de marketing e homem de grande visão estratégica que por ali andava, alegadamente a pregar aos visigodos (ainda infectados com restos de arianismo), “redescobre” o túmulo no meio do bosque!
Avisa de imediato o bispo, cujo avisa Afonso II, o Casto, rei das Astúrias e todos se precipitam com grande júbilo para o local. Encontram três sepulturas, com os ossos todos à molhada. Mesmo sem qualquer perícia forense, de imediato decidem ser o santo e seus discípulos, não pondo sequer a hipótese de ser também a própria rainha Lupa!
Para completar o golpe publicitário, logo em 844, na batalha de Clavijo, Santiago, montado no seu inseparável cavalo branco, aparece a combater ao lado de Ramiro I contra os muçulmanos, tendo os “infiéis” sido, definitivamente, impedidos de progredir para norte.
Santiago aparece, depois, nas batalhas de Simancas e Ourique. Sempre que era preciso transformar o assassínio em “guerra justa”, lá estava o santo para abençoar. Santiago torna-se, com naturalidade, no padroeiro das Espanhas.
O negócio estava montado. Faltava um "sponsor". Ele veio na pessoa do Imperador Carlos Magno, rei dos Francos. Santiago aparece-lhe insistentemente em sonhos, explicando o simbolismo da Via Láctea e recomendando-lhe que a seguisse para venerar as suas relíquias. O Imperador vai por duas vezes a Compostela dando origem à "peregrinação" e inaugurando oficialmente o chamado "Caminho Francês". Nos dois séculos seguintes, mais de meio milhão de peregrinos vão até lá, dando à cidade uma importância que ela não tinha, passando a competir directa e ostensivamente com Braga, até aí sede religiosa da região galaica-duriense e que hoje não passa da cidade dos arcebispos.
jp

11 comments:

Isabel Magalhães said...

E depois não queriam que as criancinhas ficassem baralhadas... ;)

Andréa Blois said...

Confesso que estou com um pouco de vergonha de responder a sua pergunta, mas vamos lá. O "caveirão", como é chamado aqui no Rio, é aquele carro blindado da foto (praticamente um tanque de guerra), que a Polícia Militar usa para entrar nas favelas em momentos de confronto com os traficantes de drogas.
Para mim, ele é o símbolo máximo da vergonha que se transformou essa cidade: morros dominados por traficantes e uma polícia corrupta que precisa utilizar artifícios de exército para entrar nessas localidades. Nessas horas, as imagens são dignas de uma Bagdá. A diferença é só o que motiva a nossa "guerra".
Me dá vontade de chorar de tanta tristeza só de te contar isso. É inacreditável que tenhamos chegado a esse ponto.
De um lado da cidade, como o que eu moro, uma sucessão de imagens de cartão postal e estrutura digna de 1º Mundo. Do outro, não muito distante, o que há de pior na espécie humana. É uma cidade de contrastes assustadores!

Jorge Pinheiro said...

Andrea: eu que fico meio embarassado de ter perguntado, mas confesso que não sabia. É a chamada "Força de Elite". filme que anda por aí agora. Se lhe serve de algum consolo, aqui pelos bairros da perferia de Lisboa não há "caveirão", mas começa a haver muita confusão entre gangs e com a polícia. Obrigado pela informação.
Isabel: esta coisa dos santos sempre foi muito complicada. É uma ciência...

Manuela Araújo said...

E fazem estes turistas quilómetros para encontrar o que está ali... dentro deles.
Gosto desta tua lucidez!

bjs

Anonymous said...

Tá bem que me deitei hoje muito cedo...de manhã cedo, quero eu dizer, mas não estou maluca estou é um bocadinho baralhada...estes comentários têm alguma coisa a ver com o post? Hã?? Não tenho nada com isso? Ah, bom...

Jorge Pinheiro said...

Rose: só o da Andrea é que não tem. É resposta a pergunta que lhe tinha feito no blogue dela.

Silvares said...

Quando Atanásio e Teodor chegaram finalmente à Galiza o cadáver do santo devia mandar cá um pivete! Ou talvez não, que nesta coisa dos milagres raramente se fala dos cheiros. Mas é assim que as coisas acontecem. Muitos séculos depois é que acontecem realmente. Nas histórias.

Anonymous said...

Já percebi, já fui espreitar. Já lá estive e também notei isso.

Jorge Pinheiro said...

Silvares: de facto os milagres não cheiram. É da purificação...

Maria Augusta said...

Realmente a religião sempre foi usada pelos poderosos como uma forma de validação e justificativa para seus atos que visavam sempre o poder. E isto continua até hoje, não é mesmo?
Abraços e bom domingo.

Jorge Pinheiro said...

Maria Augusta: O melhor é exemplo é logo o do Imperador Constantino que validou a religião Católica Apostólica Romana só porque lhe servia os interesses políticos. Se tivesse tomado outra decisão, provavelmente a maioria de nós ainda sacrificava no templo de Júpiter!