20.11.08

FILHOS DO POVO DO SUL - XXXVII

O “1º Acto” (agora Auditório Amélia Rey Colaço) sempre fora o nosso clube de eleição. Sala pequena, em Algés, aberta ao experimentalismo. Esgotava lotação com cinquenta ou sessenta pessoas o que dava logo a sensação triunfal de casa cheia. Às vezes havia trinta pessoas de pé, transformando a actuação num êxito de bilheteira e o nosso ego num grande super-star.
A sala era muito tosca, minimalista, muito “avant-garde”. Uma cave que podia perfeitamente ter sido armazém de peixe congelado ou loja paquistanesa de electrodomésticos em contrabando. Seis ou sete filas de bancadas em cimento puro e duro... Palco a toda a largura da sala... “Foyer” com menos de vinte metros quadrados... Um pequeno bar permanentemente inacessível... Casas de banho manhosas com cheiro duradouro a erva e mijo residual.
Era tudo tão íntimo que o público suava em conjunto; engolia o fumo do cigarro vizinho; coçava a perna alheia; batia palmas com a mão do lado... mas era feliz!
Vista do palco, logo ali a dois metros, aquela massa informe e mal acondicionada, fazia-me agradecer a benção de estar em cena, com todo o espaço do mundo, dando-me imenso ânimo para tocar! Talvez por tudo isto os concertos no “1º Acto” sempre foram muito estimulantes para público e músicos.
Os concertos eram organizados directamente por nós. Alugávamos o espaço e tratávamos de tudo. Tínhamos, inclusivamente, de apresentar um requerimento dirigido, mui respeitosamente, ao Exmo. Director dos Serviços de Espectáculos pedindo autorização para a realização de “Espectáculos Acidentais” (sempre achei o nome particularmente adequado ao nosso caso). No requerimento “... fulano, residente algures, desejando realizar... (bailes, variedades, espectáculos teatrais, etc), num salão sito alhures, vem requerer a V. Exa., nos termos do artº 35, do Decreto 42.661, autorização para realização do referido espectáculo no(s) dia(s)...”.
O requerente devia ainda informar, entre outras coisas, o fim a que se destinava a receita líquida que fosse obtida (precaução essencial, diga-se de passagem, não fosse a malta pegar na massa toda e desatar a comprar LSD).
No final pedíamos deferimento e juntávamos um selo fiscal de 10 paus. Ah, tinha ainda uma nota final algo indecifrável: “ Quando o espectáculo se prolongue além das 12h e 30m (?!) deve ser solicitada a autorização do artº55 do mesmo Decreto”. Quem tiver o Decreto que me ajude. Esta nunca percebi: os espectáculos tinham de acabar ao meio-dia e meia do próprio dia, portanto antes de começarem ou podiam já vir do dia anterior, numa interminável sucessão de “encores”?!
Fotografia de José Maria Tavares Rosa
jp

5 comments:

Al Kantara said...

Gostei dessa dos "Espectáculos Acidentais". De facto, há alguns espectáculos que são verdadeiros acidentes. Felizmente, o Estado Novo tudo previa e aconchegava debaixo da asa autoritária...

João Menéres said...

Deduzo (mas só deduzo...) que seriam as 12:30 do dia seguinte.
Anos antes, nas festas de Carnaval, a malta saía das ditas por volta das 7:00 para ir à Padaria, comer o Pão quentinho acabado de sair do forno de lenha. Depois, cama, para dormir até ao meio dia.
às 16:00 horas já se aprontava o início de outra festa. Íamos de festa em festa, de casa em casa. Chamava-se a isso "os assaltos". Um. á entrada de cada casa, tinha que se identificar perante os donos da casa. Como era gente conhecida, todo o grupo entrava mascarado.
Isto antecedeu as bandas e o período que o Jorge aqui relembra.

Lizete Vicari said...

Amei o nome Espetáculos Acidentais, Estes sempre são os melhores.
Bela narrativa, me sentí presente
e aplaudindo com a mão do vizinho.
Adorei!
bj. lili

Alice Salles said...

Coçar a perna do vizinho é quase algo surreal, QUASE! Porque não é tanto quando ter de terminar tudo às 12:30! Se bem que depois dessa explicação do João acho que entendi melhor...
Me lembra muitos shows no Brasil que quase não sabia mais o que era eu e o que era o vizinho! Mas é bom, é muito bom.

Jorge Pinheiro said...

João: está tudo esclarecido. Só agora é que percebi. A licença dava para tudo até às 12,30. Só depois começava a contar a próxima. Afinal o Estado Novo era muito tolerante... O Al é que sabe!
Lili e Alice: ainda bem que apanharam o ambiente.