Foi naquele remoto ano de 1974 quando todos andavam, pá, entretidos a preparar o “Verão Quente”, pá, que a gente resolveu tentar, pá, elevar o nível da revolução.
Concebemos um espectáculo arrojado que dava pela singela designação de “Meu Nome É Andros”. Era uma performance multimédia, avançadíssima para a época. Um espectáculo-encenado: música, teatro, pintura, poesia, leitura, diaporama...
A cena era recriada no nosso ambiente quotidiano, o nosso “clube nocturno”. A sala do Rodrigo foi literalmente transportada para o palco com mesa de camilha e tudo, onde se sentavam músicos, figurantes e amigos que subiam ocasionalmente ao palco para enrolar uma.
Atrás, “o labinto de labirintos dentro do apartamento”. Um cenário gigantesco, a toda a largura do palco, com colunas e abóbadas a perder de perspectiva; templos góticos em decadência acelerada; escadas infinitas e corredores sinuosos; monstros reptilóides e aves sinistras pendentes num céu roxo de fogo. No meio de todo aquele barroco, a cara renascentista de um Beethoven psicadélico a vigiar tudo e todos na sua surdez iluminada.
O espectáculo começava com a voz barítono do Luís Manuel, expressamente convidado para o efeito, que introduzia o texto “Meu Nome É Andros”, enquanto o Roberto passava uma diaporama à base de slides enigmáticos com feixes cruzados colorindo o palco escuro e vazio.
O texto era desmotivador para qualquer um remetendo-nos à nossa pequenez no universo e acabava com uma enorme interrogação: “... Às vezes pergunto-me: Para quê, para onde? Não haverá um atalho?”
Depois acendiam-se as luzes de cena e entravam os músicos tropeçando nos degraus que desciam para o palco batendo deliberadamente com a cabeça nas colunas de som com ar de zombies. Os figurantes acendiam-se na mesa de camilha conversando como se estivessem em casa, tricotando malha, baralhando cartas ou enrolando mortalhas.
Os músicos eram imensos. Para além do núcleo base, havia convidados especiais e estreias absolutas. Ao todo uma dúzia. Quem não estava a tocar, sentava-se na mesa e ia fazendo fingir qualquer coisa. Depois trocávamos e assim sucessivamente.
Foi a primeira vez que cantámos para grande choque do público mais aficcionado. Era tempo de sermos post-rock-progressivos, ligeiramente neo-regressivos, um pouco auto-depressivos.
Foi dia de estreia para o Rodrigo, na flauta e voz; para a Isabel, na voz; para o Toni, na bateria e para o Marcial, no violão.
A Isabel seria a minha segunda mulher, mas eu ainda não sabia. O Rodrigo suava de flauta de bisel em riste, com nervos à flor da pele. O Toni, numa sucessão de “taffs”, tentava segurar desesperadamente o tempo que já ninguém sabia onde estava. O Marcial balbuciava uma hesitante vocalização na precaridade do flipanço: “Senhor não vai acreditar não, que eu aqui sento no chão não, que eu aqui tenho patrão não...”, nunca se percebendo se estava a favor do Senhor, do patrão ou do chão. A única certeza era “não”. O Paulo, carregado de optimismo, recomendava ao estimável público: “Apoia-te em mim amigo, agarra na corda bamba...”. O Xico Zé anunciava premonitoriamente “Lá vêm os Árabes”. O velho “Rapaz Extralúcido”, a três guitarras e duas flautas, foi tocado a uma velocidade que nos ultrapassava. O “Palhaço” era um verdadeiro manifesto. Uma raposódia semi-dita , semi-cantada, que acabava numa melopeia infantil repetitiva em aceleração explosiva. Tudo “um pé de cá, um pé de lá, um pé no meio do ar”.
Finalmente o momento alto! Silêncio total... Vestido a rigor, no seu traje árabe, entra o António Baraona, então casado com a Eunice Muñoz e convertido à religião do Profeta. Despeja, monocordicamente, em cima do público aparvalhado, quinze minutos de eloquente poesia retirada do seu último trabalho, “O Progresso de Jesus”, acompanhado a marimbas africanas que eu tocava no chão em posição de lotus, pelo Rodrigo e pelo Paulo, em pé, ambos na flauta. Quando o “mestre” disse por fim: “Não é a alma que está no corpo, o corpo é que está na alma”, a malta acordou em aplausos devastadores e o concerto acabou em extâse xamânico.
O êxito foi tal que fomos de imediato abordados para uma sessão privada no atelier de mestre Lagoa Henriques ali num daqueles barracões que dão para a Estrada Marginal, onde é hoje a Universidade Moderna.
Pé direito enorme… “Mezzanine” lá no alto… Tudo em cimento cru… Apolos esculpidos nos cantos recônditos… Mistura de “beatiful people” com estivadores… Camas com muita gente a descansar ao mesmo tempo…
Ninguém nos ouvia. Éramos apenas ambiente, decoração. Senti-me uma espécie de “Velvet Underground”, numa “Factory” provinciana, olhados diletantemente por “Andy Wharol’s” de trazer por casa. Deve ter sido o nosso melhor concerto… só que ninguém reparou!
Concebemos um espectáculo arrojado que dava pela singela designação de “Meu Nome É Andros”. Era uma performance multimédia, avançadíssima para a época. Um espectáculo-encenado: música, teatro, pintura, poesia, leitura, diaporama...
A cena era recriada no nosso ambiente quotidiano, o nosso “clube nocturno”. A sala do Rodrigo foi literalmente transportada para o palco com mesa de camilha e tudo, onde se sentavam músicos, figurantes e amigos que subiam ocasionalmente ao palco para enrolar uma.
Atrás, “o labinto de labirintos dentro do apartamento”. Um cenário gigantesco, a toda a largura do palco, com colunas e abóbadas a perder de perspectiva; templos góticos em decadência acelerada; escadas infinitas e corredores sinuosos; monstros reptilóides e aves sinistras pendentes num céu roxo de fogo. No meio de todo aquele barroco, a cara renascentista de um Beethoven psicadélico a vigiar tudo e todos na sua surdez iluminada.
O espectáculo começava com a voz barítono do Luís Manuel, expressamente convidado para o efeito, que introduzia o texto “Meu Nome É Andros”, enquanto o Roberto passava uma diaporama à base de slides enigmáticos com feixes cruzados colorindo o palco escuro e vazio.
O texto era desmotivador para qualquer um remetendo-nos à nossa pequenez no universo e acabava com uma enorme interrogação: “... Às vezes pergunto-me: Para quê, para onde? Não haverá um atalho?”
Depois acendiam-se as luzes de cena e entravam os músicos tropeçando nos degraus que desciam para o palco batendo deliberadamente com a cabeça nas colunas de som com ar de zombies. Os figurantes acendiam-se na mesa de camilha conversando como se estivessem em casa, tricotando malha, baralhando cartas ou enrolando mortalhas.
Os músicos eram imensos. Para além do núcleo base, havia convidados especiais e estreias absolutas. Ao todo uma dúzia. Quem não estava a tocar, sentava-se na mesa e ia fazendo fingir qualquer coisa. Depois trocávamos e assim sucessivamente.
Foi a primeira vez que cantámos para grande choque do público mais aficcionado. Era tempo de sermos post-rock-progressivos, ligeiramente neo-regressivos, um pouco auto-depressivos.
Foi dia de estreia para o Rodrigo, na flauta e voz; para a Isabel, na voz; para o Toni, na bateria e para o Marcial, no violão.
A Isabel seria a minha segunda mulher, mas eu ainda não sabia. O Rodrigo suava de flauta de bisel em riste, com nervos à flor da pele. O Toni, numa sucessão de “taffs”, tentava segurar desesperadamente o tempo que já ninguém sabia onde estava. O Marcial balbuciava uma hesitante vocalização na precaridade do flipanço: “Senhor não vai acreditar não, que eu aqui sento no chão não, que eu aqui tenho patrão não...”, nunca se percebendo se estava a favor do Senhor, do patrão ou do chão. A única certeza era “não”. O Paulo, carregado de optimismo, recomendava ao estimável público: “Apoia-te em mim amigo, agarra na corda bamba...”. O Xico Zé anunciava premonitoriamente “Lá vêm os Árabes”. O velho “Rapaz Extralúcido”, a três guitarras e duas flautas, foi tocado a uma velocidade que nos ultrapassava. O “Palhaço” era um verdadeiro manifesto. Uma raposódia semi-dita , semi-cantada, que acabava numa melopeia infantil repetitiva em aceleração explosiva. Tudo “um pé de cá, um pé de lá, um pé no meio do ar”.
Finalmente o momento alto! Silêncio total... Vestido a rigor, no seu traje árabe, entra o António Baraona, então casado com a Eunice Muñoz e convertido à religião do Profeta. Despeja, monocordicamente, em cima do público aparvalhado, quinze minutos de eloquente poesia retirada do seu último trabalho, “O Progresso de Jesus”, acompanhado a marimbas africanas que eu tocava no chão em posição de lotus, pelo Rodrigo e pelo Paulo, em pé, ambos na flauta. Quando o “mestre” disse por fim: “Não é a alma que está no corpo, o corpo é que está na alma”, a malta acordou em aplausos devastadores e o concerto acabou em extâse xamânico.
O êxito foi tal que fomos de imediato abordados para uma sessão privada no atelier de mestre Lagoa Henriques ali num daqueles barracões que dão para a Estrada Marginal, onde é hoje a Universidade Moderna.
Pé direito enorme… “Mezzanine” lá no alto… Tudo em cimento cru… Apolos esculpidos nos cantos recônditos… Mistura de “beatiful people” com estivadores… Camas com muita gente a descansar ao mesmo tempo…
Ninguém nos ouvia. Éramos apenas ambiente, decoração. Senti-me uma espécie de “Velvet Underground”, numa “Factory” provinciana, olhados diletantemente por “Andy Wharol’s” de trazer por casa. Deve ter sido o nosso melhor concerto… só que ninguém reparou!
A foto é parte do cenário utilizado no concerto.
jp
5 comments:
Eh, Jorge !
Fiquei esgotado, pá, com o ritmo da escrita, pá , que me levou a uma leitura, pá, como dizer, alucinante, pá.
Fantástica a descrição, Jorge !
Até dá para nos sentirmos bem dentro do recinto nessa noite.
Parabéns, uma vez mais, tanto pela memória do acontecimento, como pelo próprio acontecimento.
E, para o bolo ter a cereja em cima, faltam 6 dias !!!
Dá-lhes, pá !
Bem, pá...
Surpreendi-me aqui.
Quase que ouvi música...
"Cusquei" todas as postagens: descrições muito boas sobre temas que me tocam.
Vou linkar.Posso?
João: é sempre a acelerar, pá!
Mena: claro que sim. Ainda bem deu para "quase" ouvir música. Na próxima 6ª feira vai-se ouvir mesmo, mas é ao vivo... Eles estão de volta!
Quanta memória...
Pá.
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