4.12.08

FILHOS DO POVO DO SUL - LXIV

No meio de todos estes contratempos, o “Ephedra” foi contratado para fazer a banda sonora de um filme de longa-metragem que prometia revolucionar o panorama cinematográfico português. O financiamento era do Instituto Português do Cinema. Cachet, sessenta contos. Uma fortuna em 1975. O filme tinha o sugestivo nome de “Lerpar”. O realizador chamava-se Luís Couto, um jovem promissor de avançados quarenta anos. Entrava a Maria do Céu Guerra e a Isabel de Castro.
Mas, a personagem central era o Zé, cujo verdadeiro nome é absolutamente irrelevante. O Zé “era o maior”. Uma espécie de “gigolo das avenidas novas”, inicialmente perdido no deslumbramento novo-riquista das casas do Guincho onde comia as sopeiras dos “Melos” ou nos flirts marginais das bifas à boleia. Pouco a pouco, em grande parte devido aos sábios conselhos do “filósofo”, interpretado pelo próprio realizador, o Zé foi descobrindo esse heróico “povo de Abril” que, menosprezado nas campinas do Ribatejo, resistia contra os latifundiários da reacção. O filme acaba em “grande finale” com o dito Zé empoleirado num tractor apinhado de campinos, totalmente convertido ao suor e ao bagaço dos amanhãs que cantam, rejeitando a hospitalidade da nobre família de tias que o recebera diletantemente numa herdade ali para Coruche ou Benavente.
Com um argumento tão rico e profilático a banda sonora foi canja. O tema principal chamava-se “Tema da Holandesa” que era uma garina que, para além de seduzida, ainda viu reduzidos os haveres surripiados pelo Zé na sua fase mais tenebrosa. O tema foi glosado em estilo folk ao longo do filme e repetido até à exaustão, não por falta de imaginação, mas apenas para evitar que os espectadores se dispersassem demasiado dada a densidade do enredo. Depois havia temas extravagantes como “Homem que Lavas no Mar” e “Fado de Além Mar”, algum improviso ambiental e uma versão afro-latina do “Povo do Sul” para animar uma cena de “boite” em que o Zé, aleivosamente, tentava enganar umas miúdas que só estavam ali para ver passar os comboios.
Entrámos a gravar nos “Estúdios Rádio Triunfo”. Só tínhamos um dia. Começámos depois do almoço e saímos às seis da manhã com olheiras pelos joelhos, completamente fartos da música em geral, da nossa em particular, vomitando semicolcheias, abominando técnicos de som, realizadores e muito especialmente o Zé.
À medida que o cansaço se apoderava de nós, as fífias começavam a multiplicar-se em progressão geométrica. Por volta das quatro da manhã, meio quilo de maconha e duas grades de cerveja mais tarde, estávamos presos por uma estúpida nota de uma estúpida guitarra portuguesa que teimava em não se deixar gravar para a posteridade.
O Marcial suava isolado numa casota envidraçada sabendo ser o último obstáculo entre nós e o sono dos justos. “Guitarra portuguesa, enganou-se outra vez”… “Trlim, trlim, trlim, trac”… “Guitarra portuguesa, enganou-se outra vez”… “Trlim, trlim, trlim, trac”… “Enganou-se outra vez”… Agora é a guitarra que começa a desafinar. O Marcial ria nervosamente. Já ninguém tinha pachorra. Alguém mais lúcido desabafa: “Fica mesmo assim, porra!” O técnico de som não hesita.
Quem vir o filme está proibido de sair a meio mesmo que a tal se sinta tentado. Só assim poderá ouvir esta deliciosa fífia que é, indiscutivelmente, o momento de maior suspense de toda a fita.
O pior é que ninguém viu, nem vai ver o filme. Na sequência de uma exibição privada na Sociedade Portuguesa de Autores, foi entendimento unânime que, dadas as características altamente polémicas da mensagem, a bobina deveria ficar guardada nas caves mais profundas da Cinemateca, aguardando a passagem dos anos de forma a não poder corromper costumes e mentalidades. Hoje, passadas três décadas e apesar da democracia parecer consolidada, ainda se requer autorização do director para um simples visionamento.
Curiosamente, o filme haveria de se tornar internacional através de uma retumbante estreia em Cabo Verde, testemunhada anos mais tarde pelo próprio Marcial que por lá andava a cooperar e que deve ter ouvido um longínquo eco a matraquear-lhe as têmporas: “Guitarra portuguesa, enganou-se outra vez”.
Nós, mais uma vez, ficámos sem registo fonográfico!
jp

5 comments:

ortega said...

"Homem que lavas no mar"... apanhei um ataque de riso a ler o post

Mena G said...

Bem, isto promete.
Quer dizer... se for a Cabo Verde posso ver o filme?
É que fiquei mesmo com curiosidade!

Jorge Pinheiro said...

Mena: o filme agora só é visível no arquivo da Cinemateca, ali para Belas, mas é preciso uma autorização, como eu digo. Fui ver outro dia e estou a tentar obter uma cópia. Não está fácil por causa dos direiros e autor.
Ortega: não me deixas mentir. Foi mesmo assim! Ainda te lembras do "Homem que lavas no mar". Acho que já não sei tocar essa.

Alice Salles said...

Ahhh Mas como fica sem registro!? Precisa ir lã onde quer que o filme esteja pra pelo menos copiar o filme! Não vale deixar a gente com vontade e não dizer onde se consegue! :D

Jorge Pinheiro said...

Pois, Alice, mas para copiar o filme é preciso autorização dos detentores de direitos de autor. Ainda por cima, o realizador já morreu e têm de ser autorização dos herdeiros!