
No dia 20 de Agosto, Arnaldo despertou às quatro horas da matina, emborcou um rosé fresquinho, com dois nacos de folar de chouriço. Della já tinha a máquina a aquecer. Um velho “Sinca Aronde”, de 1955. E lá seguiram pela estrada fora, rumo a Alcobaça. Arnaldo há séculos que tinha a carta de condução apreendida, desde que provocara um gravíssimo acidente na recta do Dafundo, na euforia comemorativa da “Restauração”, na própria noite de 1 de Dezembro de 1640.
Arnaldo escolhera aquele dia por ser feira na vila de Alcobaça. Vinte de Agosto é o dia da morte de S. Bernardo. Dia de confusão. Ningém ia reparar nele. Para melhor se disfarçar, vestiu-se de romeiro. Enganou-se de século...! Toda a gente o olhava com estupefacção.
Entrou no Mosteiro pelo arco quebrado em sete arquivoltas lisas. Cheiro a insenso insuportável. No lado esquerdo do transepto um puto, de calções e camisa branca, repetia até à exaustão uma versão apopalhada do “misereri nobis”, numa organeta “Farfisa”. Arnaldo percorreu as três naves iluminadas pela rosácea da fachada ocidental. Deambulou pela charola. Penetrou as nove capelas radiais. Procurava a entrada secreta para o scriptorium. Lá no alto, as abóbadas em ogiva olhavam-no com suspeição. Passou os túmulos de Afonso II e Afonso III. Comoveu-se com os restos de paixão de Pedro e Inês.
Subitamente, lembrou-se…! A ábside tem três andares. O primeiro andar é constituído por grossas colunas em que assentam arcos pontiagudos. Por trás da quinta coluna, uma discreta cruz orbicular. Arnaldo premiu o centro. A laje lateral abriu-se...
Lá dentro, obscuridade à luz de tochas. Velas crepusculares iluminando dezenas de estiradores desertos. Um latagão, em traje beneditino, saltou-lhe ao caminho. Olhos vesgos, um verde, outro azul. Cara disforme de bexigas. Lábios lepurinos. "Tu nã poteres entrato. Tu malenobis. Vatemecum... Vatemecum". A boca exalava um tremendo fedor, próprio das línguas francas. Agarrou Arnaldo com braços possantes. Arnaldo aplicou-lhe três golpes de "karate"... Ineficaz. Dois pontapés nos tomates... O homem era eunuco. À beira do estrangulamento, conseguiu tirar do bolso o saca-rolhas que sempre o acompanhava. Espetou-o no olho verde, enquanto o azul gritava de dor. O monstro caiu perplexo, arrastando consigo a tocha mais próxima, que incendiou dezenas de rolos em papiro espalhados pelo chão.
Arnaldo recompôs-se num ápice. Na sala enorme, apenas uma mesa estava ocupada. Lá ao fundo um monge centenário, vestido de branco, com uma faixa castanha atravessada no hábito, desenhava iluminuras indiferente a tudo.
Arnaldo avançou. O homem olhava em frente sem ver... Era totalmente cego. À sua frente, espalhados pela mesa, centenas de desenhos acumulados representando abóboras amarelas, abóboras de carne branca, a abóbora de carneiro e a abóbora porco, abóboras moganga, abóboras quaresma e o próprio zapalito de tronco.
Arnaldo perguntou-lhe ansiosamente: "Mestre, depressa, onde está o "Grande-Livro"?... Nada! O homem não se mexia. Continuava a pintar cucurbitáceas umas a seguir aos outros. "Mestre, mestre, o "Livro", depressa, onde está o "Livro"... Nada! O homem, além de cego, era definitivamente surdo.
O fogo alastrava. A biblioteca era agora uma caixa de fósforos. Os livros ardiam como piras funerárias. O hábito do monge começava a arder. Ele sorria... Finalmente libertava-se para ascender ao céu. Arnaldo nada podia fazer. Correu para se salvar... E assim morreu Alexandre, o último "monge de Cister".
Nada restou. O "Grande Livro" ardeu com toda a biblioteca...
jp
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