30.1.09

AVENTURAS DE ARNALDO ROCHA - O ESTRANHO CASO DAS ABÓBORAS MENINAS

EPISÓDIO VI
No dia 20 de Agosto, Arnaldo despertou às quatro horas da matina, emborcou um rosé fresquinho, com dois nacos de folar de chouriço. Della já tinha a máquina a aquecer. Um velho “Sinca Aronde”, de 1955. E lá seguiram pela estrada fora, rumo a Alcobaça. Arnaldo há séculos que tinha a carta de condução apreendida, desde que provocara um gravíssimo acidente na recta do Dafundo, na euforia comemorativa da “Restauração”, na própria noite de 1 de Dezembro de 1640.
Arnaldo escolhera aquele dia por ser feira na vila de Alcobaça. Vinte de Agosto é o dia da morte de S. Bernardo. Dia de confusão. Ningém ia reparar nele. Para melhor se disfarçar, vestiu-se de romeiro. Enganou-se de século...! Toda a gente o olhava com estupefacção.
Entrou no Mosteiro pelo arco quebrado em sete arquivoltas lisas. Cheiro a insenso insuportável. No lado esquerdo do transepto um puto, de calções e camisa branca, repetia até à exaustão uma versão apopalhada do “misereri nobis”, numa organeta “Farfisa”. Arnaldo percorreu as três naves iluminadas pela rosácea da fachada ocidental. Deambulou pela charola. Penetrou as nove capelas radiais. Procurava a entrada secreta para o scriptorium. Lá no alto, as abóbadas em ogiva olhavam-no com suspeição. Passou os túmulos de Afonso II e Afonso III. Comoveu-se com os restos de paixão de Pedro e Inês.
Subitamente, lembrou-se…! A ábside tem três andares. O primeiro andar é constituído por grossas colunas em que assentam arcos pontiagudos. Por trás da quinta coluna, uma discreta cruz orbicular. Arnaldo premiu o centro. A laje lateral abriu-se...
Lá dentro, obscuridade à luz de tochas. Velas crepusculares iluminando dezenas de estiradores desertos. Um latagão, em traje beneditino, saltou-lhe ao caminho. Olhos vesgos, um verde, outro azul. Cara disforme de bexigas. Lábios lepurinos. "Tu nã poteres entrato. Tu malenobis. Vatemecum... Vatemecum". A boca exalava um tremendo fedor, próprio das línguas francas. Agarrou Arnaldo com braços possantes. Arnaldo aplicou-lhe três golpes de "karate"... Ineficaz. Dois pontapés nos tomates... O homem era eunuco. À beira do estrangulamento, conseguiu tirar do bolso o saca-rolhas que sempre o acompanhava. Espetou-o no olho verde, enquanto o azul gritava de dor. O monstro caiu perplexo, arrastando consigo a tocha mais próxima, que incendiou dezenas de rolos em papiro espalhados pelo chão.
Arnaldo recompôs-se num ápice. Na sala enorme, apenas uma mesa estava ocupada. Lá ao fundo um monge centenário, vestido de branco, com uma faixa castanha atravessada no hábito, desenhava iluminuras indiferente a tudo.
Arnaldo avançou. O homem olhava em frente sem ver... Era totalmente cego. À sua frente, espalhados pela mesa, centenas de desenhos acumulados representando abóboras amarelas, abóboras de carne branca, a abóbora de carneiro e a abóbora porco, abóboras moganga, abóboras quaresma e o próprio zapalito de tronco.
Arnaldo perguntou-lhe ansiosamente: "Mestre, depressa, onde está o "Grande-Livro"?... Nada! O homem não se mexia. Continuava a pintar cucurbitáceas umas a seguir aos outros. "Mestre, mestre, o "Livro", depressa, onde está o "Livro"... Nada! O homem, além de cego, era definitivamente surdo.
O fogo alastrava. A biblioteca era agora uma caixa de fósforos. Os livros ardiam como piras funerárias. O hábito do monge começava a arder. Ele sorria... Finalmente libertava-se para ascender ao céu. Arnaldo nada podia fazer. Correu para se salvar... E assim morreu Alexandre, o último "monge de Cister".
Nada restou. O "Grande Livro" ardeu com toda a biblioteca...
jp

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