1951. 12 de Junho. A lava transborda a Chã das Caldeiras. Alastra pelos flancos norte, sul e leste. Escorre negra e imparável até ao mar, levando tudo à frente. Na terra ficam sulcos profundos de basalto inóspito e enrugado. Crateras abissais. Colunas de fumo escondem o horizonte. A tragédia avista-se na vizinha Santiago. Ao longe, na distante Santo Antão. Na Brava, ali em frente. Cabo Verde inteiro assiste ao pesadelo. A fúria da erupção destrói casas. Invade campos. Arrasa colheitas. Corrompe vidas.
O Pico do Fogo, a 2800 metros, explodiu. Não era a primeira vez. Não seria a última. Aquela ilha sempre fora um vulcão. Uma ilha em cone, com uma cratera antiga de 10 000 mil anos, com 9 km de comprimento por 7 de largura. A Chã das Caldeiras. No meio, descaindo para sudeste, o Pico. O grande cone irrompeu na erupção de 1785. Cerca de 1100 metros de cinzas e escórias que desafiam os trepadores mais intrépidos. No topo, uma cratera com 500 metros de diâmetro e 120 de profundidade.
Do alto do Pico avista-se toda a Chã. O mar azul ao longe. Sempre presente. A oeste a Bordeira, um bordo rochoso em meia-Lua que chega a atingir 1000 metros de altura. Uma muralha colossal que cerca a cratera. Ergue-se abrupta na aspereza das paredes acastanhadas, protegendo o lado ocidental da ilha e a cidade de S. Filipe, capital do Fogo. À sombra da Bordeira algumas pinceladas de verdura sem brilho. Mato fugidio que desponta na humidade fugaz da aridez desértica. Ao longe, a massa acinzentada do vulcão recortada no perfil agudo do grande cone. Entre ambos o negrume da Chã. Um espaço oprimido, num horizonte de desolação. Ali tudo é possível. Estamos noutro planeta!
Às 8h da manhã daquele dia 12 de Junho sentiu-se um grande abalo. A seguir ouviu-se uma espécie de trovão. Um quarto de hora depois começava a erupção. Pedras incandescentes e cinzas negras expelidas à distância. Lume vivo irrompendo pelas fissuras na base do Pico. Várias crateras surgindo nas convulsões telúricas que se seguiram. A Chã incendiada geme de angústia. Culturas devastadas. Casas esmagadas. Casas onde vive gente negra de cabelos ruivos e olhos azuis, todos descendentes de Armando Montron, um francês que trocara o seu castelo pela beleza lunar da Chã das Caldeiras.
As populações em pânico refugiam-se em Cova Figueira, a sudeste. Cerca do meio-dia as lavas derramadas ao nível da Chã já haviam alcançado o seu bordo, precipitando-se pelo declive da encosta. Às três horas da tarde, sentiu-se o terramoto mais violento. Fragmentos de escarpas rochosas desabaram com fragor. Do chão eleva-se cinza de erupções antigas. O pânico aumenta. A população foge de terra em terra, refugiando-se em Mosteiros, no lado norte.
Em breve toda a ilha estava coberta por uma nuvem negra de cinzas. Do mar a coluna de fumo era visível na linha do horizonte. Pedaços enormes de lava são ejectados a mais de um quilómetro.
Naquele dia a cidade de S. Filipe acordou em sobressalto. Nas casas chãs do povo e nos sobrados coloridos com varandas coloniais o chão treme. Madeiras rangem. Loiça quebra-se. Um ribombar distante, acompanhado de grossos rolos de fumo. Chamas avançam na direcção do Monte da Bula. Pânico geral. Gente alvoroçada corre pelas ruas empedradas em direcção do mar, acumulando-se desesperados cá em cima no Largo do Presídio. Outros refugiam-se na igreja, rezando pela salvação. Gritos horrorizados. Famílias que se separam. Todos fugindo, muitos sem saber para onde. Fragmentos de escória expelida pela erupção caíam sobre a cidade. Uma chuva de cinza negra e grossa cobre como um tapete negro as ruas sinistramente desertas. O céu negro anoitece o dia. A cinza incendeia os pulmões. A respiração torna-se insuportável. Desta vez era a sério. O vulcão explodira!
Excertos da biografia “Roberto Barbosa – Um Olhar Mágico” que estou a ultimar. O Roberto nasceu em 1953 na Ilha do Fogo, em Cabo Verde.
Fotografia: Roberto Barbosa
15.1.09
ILHA DO FOGO - SPIRITU DE BURCAN
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55 comments:
Que bom saber essas informações e noticias do Roberto Barbosa! A cada dia gosto mais da figura humana do Roberto. Do Fotógrafo e suas imagens já era fã há tempos!
Forte abraço e parabéns pela postagem, amigo e parceiro, Jorge!
Que historia! Deve ser uma daquelas experiencias que quem vive sente o dever de viver para contar e deixar registrado como o Roberto deixou. Parabens pelo post e pela historia!
JP;
Gostei de ter passado por cá. Excelente participação.
Bj
I.
Vulcôes são lindos... a uma longa distância.
Hoje vai ser FOGO, mesmo e qualquer semelhanca na escolha será mera coicidência, hahahahhahaah!!!
Também falei sobre a mesma ilha, mas de um outro ângulo. Bom saber mais coisas sobre ela.
Um abraco
Tal como o fogo... a beleza da ilha é selvagem...
maravilha de história...minha experiência com lavas se limita às petrificadas e impressionantes formações na Terra do Fogo...andar sobre elas é quase se sentir pré histórica...
La naturaleza no tiene piedad, cuando hace las cosas las hace a lo grande. Y cuando escupe fuego mejor no estar cerca :)
Bonita participación :)
Fiacmos à espera do livro.
Temos que falar nisso.
Um abraço
Pelo que..ja..vi..das..blogagens.
vulcões..fascinam..mais..gente..do..que..pensei.
Abç
Jorge, como disse Alice, uma experiência espetacular e que não poderia ser deixada sem esse compartilhamento, como fez o Roberto através dos seus registros, pois é visível na atividade de um vulcão a força magna desta Natureza e seu poder de transformação.
Também, como Peri, acho bonito de longe.
Ery
Abraço. Obrigado por tua visita.
Sabemos que é essencial que a terra se solte, e voltou a vomitar esse malandro não me lembro é do ano mas minha “code” já era nascida.
Já vivi numa ilha vulcânica (S. Miguel) onde experimentei a sensação de sentir a terra tremer quase todos os dias, onde as manifestações da força poderosa da natureza se podem constatar.
Já estive no Etna (ainda inactivo).
Já tomei banho numa praia onde quem põe os pés na areia, debaixo de água, se arrisca a queimar-se (Praia da Ribeira Quente - Açores).
Já vi fumarolas a 20 metros de profundidade no mar, quando fazia mergulho no mar açoriano.
Mas nunca assisti a uma erupção real assim. Deve ser aterradora.
Os vulcões mostram-nos a força da natureza. Os Açores são belissimos, mas viver perto de um vulcão tem que se lhe diga, é insegurança dia a dia. O seu texto é fantástico. Parabéns
Esta ilha é fogo !...
JORGE
Tenho estado a comentar QUASE todas as participações na Tertúlia de hoje.
Como bem sabe, isso requer tempo e eu, ainda por cima, estive toda a manhã fora e só comecei por volta das 15:00 (acho).
A sua crónica tem uma cadência alucinante e um realismo espantoso.
Sabe quanto admiro a forma como escreve. Por isso, queria que me considerasse o seu (de novo) 1º cliente on-line para este livro próximo.
A imagem do Roberto Barbosa é muito boa.
Parabéns à "dupla" !
Linda foto, excelente texto, fantástica participação. Sim, também estou à espera do livro!
Conheço pouco da história de Cabo Verde, embora a sua música tenha feito parte da banda sonora da minha vida. Ah, e a cachupa também, de vez em quando.
Por isso é sempre bom saber algo mais da história de um país que espero vir a conhecer em breve.
Parabéns.
Oi, é minha primeira participação na Tertúlia virtual e estou adorando. Cada post mais interessante q o outro. Já é o segunto que leio sobre esta ilha mas os enfoques foram diferentes. parabéns!Abraço
12 de junho de 1951!
Isso é modo de descobrir os sinais da natureza de que estava nascendo um James Emanuel?
Belo texto, coincidência inesperada.
Um abraço.
Boa imagem e boa história
É interessante haver uma Ilha do Fogo
será habitavel?
Com tanto fogo que derrama é dificil
Eduardo: A história biográfica que estou a contar começa aqui porque foi debaixo do vulcão, naquele dia, que pai e a mãe começaram a namorar. Uma história fabulosa que nem o Roberto(um fã incondicional de Garcia Marquez) se teria apercebido.
Oi,passando para ver teu post.. Tertulia Virtual em Cabo Verde: Ilha Fogo com fogo de Vulcão! Excelente escolha!
Abraços!
Georgia: grande coincidência. Nossos posts complementam-se.
Alice: eu próprio já estive em Cabo Verde e, para além do testemunho da mãe do Roberto, tb. deu para entender o "spiritu de burcan" (crioulo da ilha).
Ví: não imagina a loucura que é sair da avioneta numa pista com cabras a correr à frente e, de jeep, subir 1500 metros quase a pique num calor louco, com uma vegetação preta pintada de negro.
Um passeio único. Conheço várias ilhas vulcânicas (Açores, Canárias, S. Tomé), mas nenhuma tem a força do Fogo!
Isabel,
Bento,
Peri,
Obrigado pela vossa apreciação.
Senor R: de acordo. E mesmo depois não é fácil. Esta erupção só arrefeceu cerca de 1 ano depois!
António: o livro ainda está um pouco atrasado. Vai ter agora um novo fôlego. Falaremos...
Fascinante, contado por um poeta, e de todos que passam por esses abalos na natureza, dizem que as transformações são imensas.
Obrigado por trazer tão emocionante relato.
bjs
JU
Chico: os vulcões são de facto fascinantes. Sem eles não havia vida.
Ery: não tenho registos fotográficos da erupção que descrevo. Estas e outras fotos são tiradas pelo Roberto já com as lavas completamente consolidadas. Refira-se que esta encosta da ilha é negra e desolada; a outra é verde e florescente. Ambas lindas!
Claire: é um vomitado muito indigesto. A erupção de 1995 foi diferente, mas igualmente grave... são sempre!
Jorge: houve uma altura que andei com a mania de organizar viagens a ilhas com vulcão. Ainda fiz algumas: Tenerife; Lanzarote; Gomera; Madeira; Terceira; S. Tomé; Santiago e Fogo. Depois desisti... São paisagens fantásticas e todas diferentes. Recomendo a obra de Orlando Ribeiro para quem quiser perceber cientificamente esteas fenómenos.
Mikasmi
Al Kantara
Rose
Obrigado pelos comentários. O livro será, para mim, mais que um prazer uma honra poder escrevê-lo. Ainda falta um pouco... Depois aviso.
Interessante a coincidência...rsrs
Li sobre a mesma ilha no blog da Georgia...rsrs
Duas participações e um só vulcão!
Beijos meu amigos e adorei saber mais um pouquinho sobre esta ilha interessantíssima...valeu!
Ótima participação! Não conhecia o autor Roberto Barbosa e nem o livro Um Olhar Mágico. Obrigada por me apresentar!
Gostei também de sua visita!
Bjs.
João: mais uma vez fico esmagado com o seu comentário. Se tudo correr como espero, faremos do lançamento desse livro um evento festivo digno do Roberto.
... João, para o qual está obviamente convidado.
António Oliveira: é indispensável conhecer Cabo Verde. Não hesite, na próxima oportunidade.
Vanessa: continue a participar. Este cantinho da blogoesfera é bem divertido!
James: acertou no dia dos seus anos? Fantástico. Um dia telúrico!
Dalva: ainda bem que gostou. Continue a aparecer.
Francisco: claro que é habitado. Então o meu amigo Roberto nasceu lá! Mais: só há 3 cicades em Cabo Verde e uma delas é S. Filipe, no Fogo! Tens que ler os textos até ao fim...
Sonia: não entendeu. O Roberto já morreu era fotógrafo. Tenho passado muitas fotos dele no meu blogue. em "Antologia". O livro ainda não está completo e será uma biografia dele escrita por mim.
Serena: as coincidências neste caso complementam-se. Obrigado pela visita.
Ju: o cenário da ilha do Fogo é desconcertante. Só visto mesmo. E depois, há as pessoas que são absolutamente fantásticas. A cidade é tipicamente colonial, com sobrados à antiga. Há os "brancos" e os "pretos", velhas descendências que se mantêm. No Fogo, nem no período de ocupação filipina de Portugal a nossa bandeira foi retirada... Enfim um microcosmos!
Jorge, quanta riqueza de informações, aliás como sempre por aqui. Valeu esta pausa nas férias para visitar a imperdível Tertúlia.
Um grande abraço e até breve.
Maria Augusta: prezo muito a sua opinião. Ainda bem que gostou. Continuação de boas férias.
Boa noite! Uma história contada com todas as cores... Parabéns!
Jorge. bela postagem.
Abraços
Estou anciosa para ter esse livro na mão. :)
Estou ansioso por ver esse livro!
Parabéns pelo post, Jorge.
Abraço
Flor e Adelino: obrigado.
Maria e Jon: calma... Já faltou mais. A culpa é do blogue que não me deixa ter tempo para nada!
Olá a todos! Excelente "coisa", esta da Tertúlia Virtual. Este mês junto-me a vocês.
Bem-haja!
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