À medida que se aproxima a idade de morrer interrogo-me qual a melhor forma de o fazer. Um acidente? Muito traumático. Um carro esmagado. Pernas e braços partidos. Fracturas expostas. Ambulâncias uivando. Ruído ensurdecedor. Urgências hospitalares. Sangue e transfusões... Um ataque bombista? Bem sei que está muito na moda, mas não me apetece nada ficar todo esparramado no chão oleoso, o olho esquerdo a rebolar no alcatrão encardido, a mão direita decepada espezinhada por pés descalços na fuga caótica, metade do cérebro derramado nos intestinos de um qualquer desconhecido... Dentro da chamada "morte natural" temos, basicamente, a morte súbita e a morte por doença prolongada. E aqui a escolha é verdadeiramente complicada. A morte súbita é demasiado súbita. Sem pré-aviso. Dramática. Num segundo estamos cá. Noutro estamos lá. Caímos redondos sem dar por coisa alguma. Talvez não se chegue a sofrer. A ideia até parece interessante, mas na prática é revoltante. Não temos tempo para nada. Ficam imensas coisas por fazer. Sem tempo para testamento. Família e amigos ficam em choque. Não nos chegamos a habituar à ideia. Tem-se a sensação de falhanço. Um motor que se recusa a trabalhar. Um defeito de fábrica... A doença prolongada trás o sofrimento. A deterioração física. O incómodo das camas articuladas. Das cadeiras de rodas. Cirurgias inúteis. Tubos, cateteres e soro. Máquinas respiratórias e ressonâncias magnéticas. Remédios sem fim. Pânico permanente. Enfermeiros por turnos e médicos infinitos. Mas ainda podemos ter uns meses de vida. Uma esperança mirifica. Um devaneio clínico. Ainda podemos falar derradeiramente com os amigos que tiverem a coragem de nos visitar. Prolongar a vida em últimas vontades diletantes. Matar saudades de tudo o que ficou por fazer... A dúvida instala-se. E fico sem saber. Ainda bem que não tenho de escolher. Se não ficaria eternamente hesitante e acabaria por ir adiando a morte até dia de São Nunca à Tarde.
2.6.13
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13 comments:
rs...Gostei desse final! E é danado mesmo.Acho que preferiria apenas apagar, dar um suspiro e pluft.Fuuuuuuuuuuuuuuuuuuui,rs. Abração,chica
não penses nisso!!! mas que escreveste uma bela reflexão metafísica, lá isso escreveste :))
beijo
Só essa descrição é humorística, Jorge !
Preferia morrer a dormir, sinal de que alguma coisa já não estaria lá muito bem e, portanto, tudo poderia estar mais ou menos preparado...
Essa conversa, não.
Estive a ler a reportagem dos posts anteriores e cheguei a este:
Primeiro, mal li o título pensei no fabuloso livro que li: "Morrer É Só não Ser Visto" de Inês de Barros Baptista - testemunhos de quem perdeu alguém e como soube dar a volta
e vens tu dando largas à tua fabulosa imaginação com interrogativas dando voz/escolha ao "morto" e sinceramente deste-me a volta a cabeça mas soltei uma sonora gargalha com a "morte súbita" e com a última frase:)
Eu não gostei, adorei...mais um texto para a minha colecção e se eu pudesse escolher, teria uma que não referes, é a transcrita na frase tipicamente portuguesa: acordar morto hehehehehe!
Adoraria poder escolher a boa morte em hora por min determinada.
FATYLY
Somos uns corajosos !!!
CLAIRE
E tens a certeza que eras capaz de escolher a hora ?
outra vez, na linha do desaparecer. Mas porque tão belo SER pensa tanto na hora de mudar de órbita?
Quedemo-nos por estas andanças e sintamos a dança do belo prazer de viver!
Beijinhos
HÁ QUE ENCARAR A REALIDADE, Luísa !
Não é nenhum drama...
Luísa: este Expresso passa por muitos lados. Agora em Chaves, amanhã em Berlim. Gostava muito de manter o blog depois de morrer. Afinal isto está tudo nas "clouds".
João, certeza nenhuma! Beijinhos
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