16.6.10

BLOGGINCANA - JUNHO




Em 1975 juntei-me a uns amigos para explorar um bar/restaurante. A coisa passou-se ali em Caxias, terra morta, de difícil acesso, ao lado da fedorenta ribeira de Laveiras. Acresce que ninguém tinha qualquer experiência de restauração.
A casa tinha um só piso em L, com logradouro vasto, pequeno parque para crianças com baloiços e escorrega, pintada em cal branca e janelas enquadradas a azul, tipo alentejano. Tomámos aquilo de exploração e procedemos a remodelação total para a qual convocámos todos os amigos, a troco de cerveja gratuita.
O restaurante Chamava-se “Cozinha da Cartuxa”. Os sócios eram o Zé Tó, que oferecia a grande vantagem do pai ter uns talhos e a enorme desvantagem de beber que nem uma esponja; o Jó, que só tinha desvantagens e o João e a Raquel, que se encarregaram da cozinha, coisa que nos pareceu o mínimo indispensável para abrir um restaurante.
O modelo de negócio era simples. À noite os clientes empanturravam-se no restaurante e seguiam ao bar onde passariam a noite a beber cervejolas, whiskies de malte e tostas mistas, até cair para o lado. Às vezes até havia música ao vivo. Ao almoço seria mais para negócios. Aos fins de semana famílias inteiras de caxienses acorreriam, depois da missa, deixando os petizes entretidos no parque infantil, enquanto aumentavam o colestrol nas mesas comunitárias do refeitório.
O restaurante foi a primeira “tasca moderna” da região de Lisboa e Vale do Tejo. Paredes brancas, mesas pretas com tampo de mármore e bancos corridos igualmente em preto. Chão de tijoleira. Por cima de cada mesa, candeeiros psicadélicos pintados pelo Paulo, contrastando no branco e preto da sala. O serviço era muito informal… mesmo muito informal!

No restaurante o serviço era um primor post-moderno. O Jó encarava placidamente os clientes com a cinza pendente no cigarro pendurado, enquanto tirava os pedidos coçando crostas na cabeça com a tampa da caneta “Bic”. O Zé Tó esgotava, com denodada preserverança, a reserva de conhaque “Rémy Martin” e atirava com garfos para cima de ovos estrelados, rebentando a gema à vista dos comensais estupefactos. Os bifes, na ânsia de ser comidos, saltavam para o chão como se tivessem molas. De tempos a tempos, uma beata de cigarro despontava irreverente no meio da feijoada. Lá dentro, na cozinha, os cães do João e da Raquel passeavam impunes, soltando livremente pulgas e carraças no chão peganhoso de desperdícios oleosos. Eu servia "copos de três" atrás do balcão tentando passar despercebido, preocupado com as precárias entradas de caixa.
Um dia saiu uma crítica favorável no jornal “Expresso”. Foi um desastre. No fim de semana seguinte a invasão foi tal que rompeu os abastecimentos. Os clientes esperaram horas enquanto corríamos a casa dos pais tentando encontrar desesperadamente meia dúzia de ovos, um reforço de fruta, restos de entrecosto… O serviço às mesas tornou-se de abandalhado em inexistente. Todos nos refugiávamos na cozinha recusando enfrentar as reclamações da clientela que debandou enraivecida sem pagar a conta.

E a paz voltou. Essa paz que nos permitia jantar sossegadamente com os amigos, devastando a garrafeira sem risco de ser incomodados por um intrépido cliente exigindo ser atendido!
Obviamente as dúvidas sobre a viabilidade do negócio cresciam, mas ninguém sabia avaliar a situação. A bem dizer ninguém sabia fazer contas. Era a chamada gestão permanentemente corrente. Ou seria decorrente?

NOTA: texto retirado da epopeia "Filhos do Povo do Sul" já aqui publicado na íntegra e que me pareceu ajustado à tarefa pedida para este mês - "Faça um post com o Tema preferido do seu Blog. Se é poesia, pintura, literaratura, fotografia... dê o seu melhor. Faça aquele post especial que sempre quis fazer. Um post para a Bloggincana".

23 comments:

João Menéres said...

Tenho esse texto bem presente, obviamente.
Como poderia esquecê-lo?
A imagem é que é novidade, ou estarei errado?

Tarefa PERFEITAMENTE cumprida.
>permanentemente corrente< é uma ligação de palavras em que o JORGE é exímio.

Excelente participação!

Viajar no EXPRESSO e ser-nos permitido parar em todas as estações e apeadeiros é um privilégio.

Obrigado por nos conceder o passe vitalício!

angela said...

Um texto delicioso de ler, não sei se de lembranças ou de criatividade de qualquer maneira muito bom, com personagens e situações bem desenvolvidas.
beijos

Fátima Santos said...

oh! Jorge! que reli o texto com igual gozo (ou maior por ser tão denoite rs)

Li Ferreira Nhan said...

Jorge
é tão bom ler, reler suas escritas...

Não conhecia a imagem; quadro mais que perfeito de uma época;
época de solidariedade, camaradagem, ingenuidade, de amor, sexo, drogas e rock n' roll.
Deliciosa sua tarefa!
Muito saborosa!
beijo

myra said...

nao conhecia..mas o que li agora, achei mais que otimo!
como voce escreve BEM!!!
beijo imenso e sonoro!

Anonymous said...

Como já conhecia o texto, reli com igual satisfação!

Mar de Bem said...

Ena, ri que me fartei!!!
Homem, que ironia fina!!!
Extraordinariamente bem descrito e bem escrito. Fantástico!!!
Adorei!!!

Reis said...

recorrentemente, uma "posta" blogGINCANAmente perfeita.

Parabéns. É bom saber das "coisas" de quem as tem, e sabe, contar.

Anonymous said...

Muito bom, Jorge. Só desgostei um bocadinho da descrição que fazes da "terra morta, de difícil acesso" (apesar de não estares assim tão longe da verdade, diga-se de passagem). Essa foi a terra onde por um feliz acaso nasci, cresci, conheci o amor da minha vida, casei e onde vivi a maior parte da minha vida, onde também nasceram as minhas duas lindas filhas... e até a "fedorenta ribeira de Laveiras" já há muito deixou de ser tão fedorenta. E convenhamos, até acolheu a primeira "tasca moderna" da região de Lisboa e Vale do Tejo. Muito bom!
Isto tudo só para te dizer que adoro as tuas histórias, especialmente estes episódios caxienses que dão um colorido tão especial às minhas memórias. Obrigada por isso.
Beijinhos
Bela Barbosa

Lizete Vicari said...

Jorge amei a tua história!
Quem não teve um projeto de se divertir e fazer algum troco?
Me sentí em teu lugar no balcão,
querer ser invisível em situações desorganizadas, é uma máxima de nosso signo!
Parabéns pela postagem tão verdadeira!
Beijos do Brasil!!!

Jorge Pinheiro said...

Bela: tb há coisas boas e belas em Caxias. Uma delas és tu. Obrigado pelo fair-play.

Selena Sartorelo said...

Olá Jorge... Reli com o humor catastrófico da situação..dei boas risadas na intenção dessa empreitada. Totalmente sem noção..o cigarro e os cachorros, invadir a despensa dos pais ... adorei de novo.
Até eu que apenas li senti saudade..imagino você.

beijos

Sandra said...

PARABÉNS. MUITO ESPECIAL AMEI A SUA PRESENÇA POR LÁ.
PARABÉNS. é ASSIM MESMO QUE APRECIAMOS AS COISAS BOAS.

A Coletiva desse Mês está simplemente uma delicia.
Como é bom escrever..falar das coisas que realizamos, que gostamos de fazer. Isso é o verdadeiro prazer da vida.
Sandra

Essência e Palavras said...

Providenciado o banner na postagem coletiva. Na verdade me esqueci. Perdão, ta?

beejo e obrigada!

Jorge Pinheiro said...

Ainda bem que todos gostaram de ler ou reler. Era uma escrita diferente da que tenho agora (foi escrito em 2005). Mas continua saborosa... penso.

Ester said...

Saborosíssima, meu caro!

escrita fina, para poucos..
e divertido o que ainda é melhor!

Abraço,

Jorge Pinheiro said...

Obrigado Ester.

Lina Faria said...

Adoro quem sabe extrai humor de sua próprias bravatas.
É claro, uma caricatura bem feita dos loucos anos 70.
Mas saiba, Jorge, certamente não com esse poder de descreve-las, os jovens de agora ainda têm esse atrevimentos empreendedores, quando a juventude nos dá a segurança de que podemos tudo e que tudo sempre dá certo.
Não conhecia o texto e gostei muito.

jugioli said...

SAborosa e instigante!!!!
ingredientes que você sabe dosar.

bjs

Jorge Pinheiro said...

Lina: eram tempos "heróicos"...
Ju: Obrigado pela apreciação.

Claire-Françoise Fressynet said...

Sensacional a tua memória, genial a tua escrita, nem precisas inventar nada

Carla said...

Oi Jorge!
Que maravilha esta história (imagino que o cardápio também deveria ser)! Era o caos e a felicidade completos!
E, se todo o mundo era feliz (independente das taxas de colesterol), isso é o que basta!
Um abraço!

Andreia Alves said...

Olá Jorge,
que delícia de texto!
Estou rindo sozinha e esta hora da madrugada, rsrsrsr
Belíssima tua participação, texto explêndido.
Terno beijo querido...