28.6.07

CONTOS DA RIA - O GUARDA-SOL

"Mariana onde está o guarda-sol?". Todos os anos era a mesma coisa. Por pouco não se esqueciam de mim. À última hora lá me iam buscar à arrecadação onde passara mais um Inverno húmido e bolorento. Eu que era feito para o ar livre só tinha direito àquelas breves três semanas de férias.
O carro era pequeno. Eu, como de costume, viajava no fundo do porta bagagens esmagado por malas, geleiras e pranchas na mais completa escuridão.
Ouvira dizer que este ano íamos para a zona de Tavira. Mas ninguém se dignara informar-me ao certo. E, no entanto, eu era imprescindível.
A viagem correu como era de prever. Sairam com duas horas de atraso. Já na auto-estrada deram pela falta da chave da casa de férias. O pai berrou com a mãe até esta romper em pranto. Os três miúdos gritaram o tempo todo. Pararam em Álcacer para fazer chi-chi. Em Grândola para fazer có-có. Almoço em Aljustrel. O mais novo vomitou em Almôdovar. Às cinco da tarde Pedras d'el Rei era ainda uma miragem.
A casa era acanhada e com pouca arrumação. Eu fiquei num canto escuro entre uma irritante vassoura amarela e uma esfregona húmida que não parou de espirrar a noite toda.
Agora vou todos os dias à praia. Sou importante. Agora ninguém se esquece de mim. Sou transportado com desvelo. Aberto com todo o carinho.
Todos os dias o pai enterra-me com energia na areia e abre ao Sol os meus gomos coloridos. Eu sou um guarda-sol clássico. Todo em metal. Pesado e resistente. Copa em pano amarelo, vermelho, verde e azul. Sou um guarda-sol garboso!
Por baixo de mim é o reino da sombra. Todos me disputam. À tarde os miúdos dormem a sesta. A mãe passa pelas brasas e o pai lê entusiasticamente o último romance de Garcia Marques. Ao meu lado, dezenas de guarda-sóis povoam de cores a extensão do areal.
Adoro o Sol ardente que me debota as cores. Adoro a areia tórrida em que me espetam. O mar azul que contemplo à distância. Ao longe vejo os cumes do Caldeirão e a ria derramada pelo sapal em braços sinuosos de maré-cheia. Adoro a vozearia excitada dos humanos e o cheiro intenso a creme de protecção solar. Sinto que existo... Sinto-me bem!
Não gosto de voltar para casa. Não gosto que me fechem as varetas. Detesto que me arranquem da areia. Depois, em casa, arrumam-me com desprezo no meu canto escuro. À noite tenho insónias, entalado entre a esfregona que continua constipada e a vassoura que não pára de resmungar. Durmo vigilante, aguardando pela manhã.
No fim da segunda semana começo a ficar inquieto. Mais sete dias de liberdade e voltarei à cave bafienta de Lisboa. Se tivesse pernas fugia. Seria selvagem. Viveria para sempre ao Sol.
Ultimamente tenho feito amizade com um guarda-sol verde escuro de ar sóbrio e plastificado. É um jovem guarda-sol de origem alemã com o dom da oratória.
Todos dias arenga na praia um enorme ressaibiamento, apelando à revolta total. É um agitador. À sua volta conquistou já uma vasta corte de indefectíveis seguidores.
"A humanidade é desprezível. Uma corja de egocêntricos. Só pensam neles. Nos seus prazeres mesquinhos. Nós somos escravos dos seus desejos . Prisioneiros da sua vontade", pregava ele.
Ficávamos horas a discutir as formas mais eficazes de luta. Uns aventavam greve de zelo, apelando a que não nos deixássemos fechar. Outros defendiam que não nos devíamos deixar abrir. Alguns defendiam que não nos devíamos deixar espetar. Finalmente, os mais radicais, preferiam que o vento lhes rompesse o pano para não mais servirem aquela raça degradante.
Agora tudo me passara a irritar. As cansativas expedições à praia. A quantidade de tralha que aquela gente levava. O constante retinir do telemóvel. A mãe a besuntar-se permanentemente com cremes de cheiro rançoso. O pai barrigudo tirando fotografias desfocadas aos insuportáveis filhos. Os estúpidos miúdos sempre a discutir a posse da garrafa de água, com as mãos emporcalhadas de pasta de atum... Tudo, mas mesmo tudo, me passou a irritar!
Durante a noite levantou-se um vento forte de sudoeste. De manhã o vento não tinha abrandado. Era o último dia de férias. Teimaram em ir à praia. Fui contrariado. Detesto vento forte. Sou um guarda-sol. Não sou um pára-vento!
O vento aumentava. Cada vez mais violento. Eles, descontraídos, jogavam à bola e mergulhavam inconscientes.
Comecei a sentir-me soerguer. O vento enfunava-me o pano. A pouco e pouco ia-me soltando da areia. Não tinha maneira de me agarrrar. Ainda gritei. Ninguém ouviu.
De repente uma rabanada mais forte soltou-me definitivamente. Comecei às cambalhotas pela praia fora rodopiando sobre mim próprio num torvelinho imparável. Agora eles perseguiam-me desesperados.
Ao longe um homem deitado ao Sol parecia adormecido. Eu ia cavalgando metros sobre metros em saltos avassaladores. O homem cada vez mais perto. Eu cada vez mais veloz. Eles cada vez mais longe. Dentro de mim ecoava a voz do guarda-sol alemão: "... Egocêntricos...Raça degradante... Revoltem-se!". O vento assobiava ferozmente. O homem cada vez mais perto...
Confesso que à última hora ainda me poderia ter desviado. Mas não quis! Com um ruído surdo espetei-o entre as costelas bem a meio do peito. O homem não chegou a acordar.
Para mim acabaram os Verões. Agora cumpro pena de prisão perpétua no fundo da arrecadação. As traças comem-me o pano desbotado. A ferrugem corrói-me as entranhas enegrecidas.
Eles passaram a alugar toldo à época e nunca mais foram para Pedras d'el Rei.
jp

1 comment:

Anonymous said...

Esta dá-me vontade de rir...