Como dizia Santo Agostinho, o tempo não existe: o passado já passou; o futuro ainda não chegou; o presente acabou de passar. Arnaldo Rocha é um agente especial da poderosa “Organização” que tenta, desesperadamente, criar o “Quinto Império”, a união do norte e do sul, do leste e do oeste. Arnaldo Rocha percorre o tempo atrás do mito.
Publicação simultânea, em episódios, no Brasil (“Varal de Ideias”) e em Portugal (“Expresso da Linha”), todas as terças e sextas feiras.
Publicação simultânea, em episódios, no Brasil (“Varal de Ideias”) e em Portugal (“Expresso da Linha”), todas as terças e sextas feiras.
EPISÓDIO VII (continuação)
A água desliza em torrente pelo Largo da Sé. Escorre pelo Largo de Santo António, pelo Largo da Madalena, pela Rua da Conceição, até desaguar na Rua dos Fanqueiros, em espirais desvairadas que rodopiam nas esquinas e explodem nos bueiros exaustos de humidade. A água escorre e com ela vai Arnaldo deslizando, apático e intrigado…
Acaba, cada vez mais encharcado, na Praça da Figueira, cismando no número 15. Entra na velha pastelaria “Suiça”. Senta-se, deixando uma poça de água à volta. Pede um “duchesse”, uma bica e um copo de água.
Não repara que lá atrás, numa mesa discreta, um casal vestido de cabedal, finge comer torradas.
Arnaldo devorava o terceiro “duchesse”, quando – e a vida é feita destes pequenos “quandos”- resolve olhar a Praça da Figueira. Primeiro vê a estátua de D. João I… Subitamente a estátua é obnubilada por um daqueles eléctricos tipicamente lisboetas. Fica estupefacto: “Carreira 15 – Cruz Quebrada*”… Cruz Quebrada… a cruz que se quebrou. Como prenunciara Mestre V.
Salta da cadeira e precipita-se para a Praça da Figueira. Entra no eléctrico. Senta-se no banco de trás, encostado à janela. Aguarda hora de partida. Tem os pés gelados. Nariz a pingar. Febre a aumentar. Ao longe, do outro lado da Praça, uma mota de grande cilindrada. Um casal de cabedal preto vestido prepara o arranque.
O eléctrico arranca finalmente. Segue pela Rua dos Fanqueiros, agora só de alfaiates. Abertura solene para o Terreiro do Paço. D. José cavalgando o Tejo no seu cavalo de bronze. Largo do Município… Rua do Arsenal… Largo do Duque da Terceira.
Na “24 de Julho”, Arnaldo vê passar uma mota com duas silhuetas de cabedal. Mal repara. Com a febre está quase inane.
O Largo de Santos abre-se para a aristocrática Lapa, alcantarilhada lá no alto, entre lençóis esvoaçando na popular Madragoa. À esquerda, o comboio do Estoril transporta restos humanos acabados de trabalhar, ansiosos pela telenovela das sete, na paz dos dormitórios periféricos.
Alcântara. Zona de armazéns. Barracões velhos à espera de quem os arrase. Curva em “S” para a direita e estamos no Largo do Calvário. Cinquenta metros acima, a vertigem da ponte sobre o Tejo cruza o espaço e o tempo também. Em baixo, o “hangar” dos eléctricos. Um enorme complexo de linhas cruzadas onde eles dormem à noite, cansados de tanto transporte.
Depois, a comprida Rua da Junqueira abre-se na Praça do Império. Atrás, o palácio rosa do Presidente da República, subindo em patamares até à Ajuda.
A Rua de Belém, com pastéis famosos desde 1837, leva-nos directamente ao Mosteiro dos Jerónimos. É aqui que saem todos os turistas. Arnaldo fica sozinho, encolhido lá atrás, tremendo de frio.
Logo à frente, o Centro Cultural de Belém e a recta de Pedrouços com as suas casas apalaçadas do sec. XVIII, quando Lisboa ficava, ali, fora de portas e os fidalgos iam às espanholas.
Arnaldo já nada via… O destino a derrapar… A mota preta em tangentes sucessivas… Febre, muita febre, alucinações de febre!
Depois de Algés, o eléctrico segue a antiga Estrada Real, hoje Rua Sacadura Cabral. Passa a velha ponte sobre o Jamor e, finalmente, atinge a Cruz Quebrada.
Na estação terminal, ninguém. O guarda-freio volta-se. De repente tem um sobressalto. Lá ao fundo vislumbra um corpo caído no último assento.
Arnaldo Rocha estava de borco. Delirava de febre, repetindo até à exaustão: “cruz quebrada, cruz quebrada...”
A ambulância chegou pouco depois, evacuando Arnaldo para o hospital.
A cruz quebrada, essa, nunca ninguém a viu…
FIM
Acaba, cada vez mais encharcado, na Praça da Figueira, cismando no número 15. Entra na velha pastelaria “Suiça”. Senta-se, deixando uma poça de água à volta. Pede um “duchesse”, uma bica e um copo de água.
Não repara que lá atrás, numa mesa discreta, um casal vestido de cabedal, finge comer torradas.
Arnaldo devorava o terceiro “duchesse”, quando – e a vida é feita destes pequenos “quandos”- resolve olhar a Praça da Figueira. Primeiro vê a estátua de D. João I… Subitamente a estátua é obnubilada por um daqueles eléctricos tipicamente lisboetas. Fica estupefacto: “Carreira 15 – Cruz Quebrada*”… Cruz Quebrada… a cruz que se quebrou. Como prenunciara Mestre V.
Salta da cadeira e precipita-se para a Praça da Figueira. Entra no eléctrico. Senta-se no banco de trás, encostado à janela. Aguarda hora de partida. Tem os pés gelados. Nariz a pingar. Febre a aumentar. Ao longe, do outro lado da Praça, uma mota de grande cilindrada. Um casal de cabedal preto vestido prepara o arranque.
O eléctrico arranca finalmente. Segue pela Rua dos Fanqueiros, agora só de alfaiates. Abertura solene para o Terreiro do Paço. D. José cavalgando o Tejo no seu cavalo de bronze. Largo do Município… Rua do Arsenal… Largo do Duque da Terceira.
Na “24 de Julho”, Arnaldo vê passar uma mota com duas silhuetas de cabedal. Mal repara. Com a febre está quase inane.
O Largo de Santos abre-se para a aristocrática Lapa, alcantarilhada lá no alto, entre lençóis esvoaçando na popular Madragoa. À esquerda, o comboio do Estoril transporta restos humanos acabados de trabalhar, ansiosos pela telenovela das sete, na paz dos dormitórios periféricos.
Alcântara. Zona de armazéns. Barracões velhos à espera de quem os arrase. Curva em “S” para a direita e estamos no Largo do Calvário. Cinquenta metros acima, a vertigem da ponte sobre o Tejo cruza o espaço e o tempo também. Em baixo, o “hangar” dos eléctricos. Um enorme complexo de linhas cruzadas onde eles dormem à noite, cansados de tanto transporte.
Depois, a comprida Rua da Junqueira abre-se na Praça do Império. Atrás, o palácio rosa do Presidente da República, subindo em patamares até à Ajuda.
A Rua de Belém, com pastéis famosos desde 1837, leva-nos directamente ao Mosteiro dos Jerónimos. É aqui que saem todos os turistas. Arnaldo fica sozinho, encolhido lá atrás, tremendo de frio.
Logo à frente, o Centro Cultural de Belém e a recta de Pedrouços com as suas casas apalaçadas do sec. XVIII, quando Lisboa ficava, ali, fora de portas e os fidalgos iam às espanholas.
Arnaldo já nada via… O destino a derrapar… A mota preta em tangentes sucessivas… Febre, muita febre, alucinações de febre!
Depois de Algés, o eléctrico segue a antiga Estrada Real, hoje Rua Sacadura Cabral. Passa a velha ponte sobre o Jamor e, finalmente, atinge a Cruz Quebrada.
Na estação terminal, ninguém. O guarda-freio volta-se. De repente tem um sobressalto. Lá ao fundo vislumbra um corpo caído no último assento.
Arnaldo Rocha estava de borco. Delirava de febre, repetindo até à exaustão: “cruz quebrada, cruz quebrada...”
A ambulância chegou pouco depois, evacuando Arnaldo para o hospital.
A cruz quebrada, essa, nunca ninguém a viu…
FIM
jp
* Cruz Quebrada é uma localidade que fica entre Algés e Caxias, muito perto de Lisboa, no caminho para Cascais.
* Cruz Quebrada é uma localidade que fica entre Algés e Caxias, muito perto de Lisboa, no caminho para Cascais.
** Próxima história de Arnaldo Rocha: "ERRO CRASSO". Como de costume, às terças e sextas feiras.
2 comments:
Lendo este capítulo me deu saudades do Mosteiro dos Jerônimos, com suas arcadas e seu estilo manuelino.
E o Arnaldo que esta doente e nem percebe que esta sendo seguido...
Pois eese é um problema que iremos acompanhar. As próximas histórias não têm que ver directamente com esta, mas o tema é sempre o mesmo e no fim veremos onde fica o "o Quinto Império".
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