
“A cristandade, renegando o fruto da carne, imaginando-se concebida sem pecado, leva o Ocidente e edificar-se sobre uma contradição fundamental, sobre um dualismo maniqueu dissimulado pela Redenção e não deixa aos fiéis outra saída que não seja a hipocrisia ou o heroísmo…” (Jean Duché, “História do Mundo”).
No séc XI, a autoridade papal estava enfraquecida: os reinos ocidentais não cessavam de se guerrear; uma série de eventos catastróficos e de superstições relacionadas com o fim do milénio enfraqueciam a fé … Havia que galvanizar os povos ocidentais numa missão comum… que, já agora, serviria também propósitos económico-expansionistas.
Foi assim que surgiu a peregrinação ao Santo Sepulcro, como panaceia para todos os males e redenção das almas!
Como já vimos, Jerusalém sempre foi a pátria simbólica do cristianismo[1]. Mas, primeiro havia que reconquistá-la aos “infiéis”.
Num dia frio de Novembro de 1095, no Concílio de Clermont, o papa clunisiano Urbano II lançou um grito que iria despertar toda a cristandade: “Deus o quer! Deus o quer! Deus o quer! Que cada um renuncie a si mesmo e se encarregue da cruz!”
Este clamor abre a epopeia das Cruzadas e proclama também o destino do Ocidente: eis o imperialismo missionário.
Em 1095, o Sol passa a erguer-se a Ocidente, fenómeno a todos os títulos notável e que ainda perdura no séc. XXI!
Na época das cruzadas, o mundo árabe, da Espanha ao Iraque, é ainda, intelectual e materialmente, o depositário da mais avançada civilização do planeta. Depois, o centro do mundo desloca-se resoluta e inexoravelmente para Oeste.
As cruzadas marcam também a fractura entre esses dois mundos, que ainda hoje perdura. Quando Ali Agca dispara, em 1981, sobre o papa, explica o seu acto: “decidi matar João Paulo II, comandante supremo dos cruzados…”.
Enquanto os cruzados se inflamam com a libertação dos Lugares Santos, Urbano II, como grande político que era, pensa que a ocasião é própria para simultaneamente, apagar o cisma da Igreja Grega (ortodoxa), consumado quarenta anos antes (em 1054).
O momento é bem escolhido: os árabes estão divididos e enfraquecidos; os bizantinos tinham pedido auxílio ao Ocidente, face à ameaça turca.
O Povo do Profeta perdera o controle do seu destino. Desde cedo dividido por querelas religiosas e dinásticas (a que já nos referimos), é, a partir do séc. IX, dominado por estrangeiros.
De facto, o califa de Bagdade, “Príncipe dos Crentes” da ortodoxia Sunita, mais não era do que um símbolo e um fantoche nas mãos dos Turcos Seljúcidas[2], que vindos da Ásia Central e posteriormente islamizados, dominavam efectivamente todo o Médio Oriente e a Pérsia.
O sultão turco de Bagdade, “protector” do califa, era, teoricamente, o soberano de todos os príncipes da região. Porém, na realidade, cada província do império Seljúcida é mais ou menos autónoma e os membros das famílias reinantes estavam totalmente absorvidos nas suas querelas dinásticas.
No Egipto reinavam os Fatímidas (chiitas), os quais, em vez de apoiar os seus irmãos sunitas de Bagdade, teriam mesmo, segundo o historiador árabe Ibn al-Athir, um pacto de não agressão com o basileus Aleixo Comneno, imperador romano do Oriente, e estavam interessados em que os Franj (nome dado pelos árabes aos cruzados) atacassem e tomassem a Síria, estabelecendo uma zona tampão entre si e os Seljúcidas.
A acrescer a toda esta divisão e interesses divergentes, não pode ignorar-se a instabilidade permanente provocada pela seita político-religiosa, porventura mais bem organizado e mais temível de todos os tempos: os hachishin[3].
Fundada em 1090 por Hassan as-Sabah, ”o velho da montanha”, esta seita defende o regresso ao chiismo em todo o Islão. Nesse sentido desenvolve um plano secreto com os Fatímidas do Egipto e vem instalar-se na Síria, onde através do terrorismo e de uma rede de espionagem impressionante, desestabiliza toda a região.
A partir da fortaleza inexpugnável de Alamut (“ninho de águia”), perto do mar Cáspio, Hassan dirige a sua organização com uma disciplina fanática, exigindo uma obediência cega: o assassínio é a arma política utilizada.
O atentado deve ser o mais público possível, (muitas vezes à 6ª. feira, nos locais de culto). Para Hassan, o assassínio é uma dupla lição: castigo para a pessoa executada; sacrifício heróico do executor (fedai ou “comando suicida”), o qual era abatido no local sem oferecer resistência, assim ingressando imediatamente no Paraíso (…é o tal dogma corânico da “jihad”, levada ao extremo).
Hassan e os seus continuadores lançam os reinos turcos uns contra os outros, infiltrando-se entre os conselheiros dos reis e não hesitando em se aliar com os reinos cristãos, constituídos após as primeiras cruzadas, numa estratégia subversiva e deliberada de tomada do poder[4].
Deve ainda salientar-se o apoio que os cristãos existentes na região (em especial os Arménios) terão seguramente dado aos cruzados, com a sua ferocidade e o seu fanatismo (há provas irrefutáveis e confessadas de canibalismo, com intuitos intimidatórios) e alguma supremacia técnico-militar, quer em termos de organização, quer de equipamento (utilizam armaduras, por exemplo).
Finalmente, e a partir de 1218, as invasões Mongóis, de Gengiscão e seus descendentes, deixam os muçulmanos numa tenaz, tanto mais que os invasores asiáticos se aliaram várias vezes com os reinos cristãos estabelecidos, contra os reinos árabes.
Só perante toda esta situação é explicável que tão poucos cristãos pudessem triunfar sobre milhões de muçulmanos e com tanta rapidez…
A verdade é que, após uma expedição que começa em Niceia (curiosamente, a mesma Niceia do Concílio), na batalha de Civitot, em 1096, este primeiro grupo de cruzados acaba por tomar Jerusalém logo em 15 de Julho de 1099, após quarenta dias de cerco!
Na sua sequência caem novas praças fortes e cidades.
Entretanto, novas vagas de cruzados vão chegando à Palestina, reforçando posições e fazendo novas conquistas.
Em pouco tempo os Franj deixam de ser considerados meros invasores e passam a fazer parte do xadrez político da região…
Vários reinos muçulmanos se aliam ou pedem ajuda a estes novos reinos cristãos, para combater outros reinos muçulmanos, adiando, assim, a jihad e a expulsão dos Franj.
Esta só viria a ser consumada pelos Mamelucos (do Egipto), com a tomada de Acre, em 17 de Junho de 1291.
[1] A menção de Jerusalém na Bíblia é entendida, na Idade Média, em vários sentidos: historicamente, é a capital dos judeus; alegoricamente, representa a Igreja de Cristo; moralmente, simboliza a alma humana; analogicamente, eleva para a cidade celeste.
[2] A origem dos Seljúcidas está envolta em mistério. O epónimo do clã, Seljuk, tinha dois filhos, Mikael e Israel, o que deixa supor que a dinastia que unificou o Oriente muçulmano era de estirpe cristã ou judaica. Após a islamização mudaram os nomes. Por exemplo Israel passou a Arslan.
[3] A forma de actuação dos membros da seita levou a acreditar que na altura dos atentados estariam drogados com haxixe, o que poderá ter dado origem ao nome haschishin, depois exportado pelos cruzados para a Europa sob a forma de “assassinos”. A tese do haxixe não está, porém, comprovada, havendo quem admita que o nome da seita deriva do fundador Hassan…Outros, consideram que a palavra “assassine” significa guardião e que a seita teria uma componente esotérica “comparável” aos Templários (voltaremos a este tema).
[4] Alamut é destruída pelos Mongóis em 1257. Desde então a seita perpetuou-se sob uma forma o mais pacífica possível: os ismaelianos, adeptos do Aga Khan, que, em bom rigor, é o sucessor em linha directa de Hassam as-Sabah.
jp
6 comments:
Já procedi à minha tarefa deste sábado.
Gosto muito de ler a história por aqui, sinto que não está " filtrada", coisa que odeio.
João: a tarefa tb. inclui leitura, espero!
Alice: agradeço a preferência. Tento fazer da história uma leitura simples e apetecível. É evidente que me baseio em fontes, a grande maioria indirectas. Portanto,necessariamente,filtradas. Tento é escolher as que parecem melhores. Não há um História. Há várias, consoante quem as escreve e interpreta. E isso é apaixonante quando se começam a fazer exercícios comparados.
Otímo conteúdo, parabéns ao EXPRESSO DA LINHA ao qual voltarei com frenquencia a partir do Brasil.
Gostaria de convidar aos amigos portugueses,para a leitura e comentário do artigo "Portugal, Brasil e Dom Pedro I encontram-se na Livraria Cultura: Dr. Negociação entrevista Iza Salles".
Iza é uma jornalista brasileira que em Portugal foi correspondente do EXPRESSO. No Brasil foi presa política nos Anos de Chumbo, escreveu do Pasquim, no Opinião e no Jornal do Brasil. Seria um prazer e uma honra receber o comentário português para o público leitor brasileiro.
Um abraço,
Nacir: obrigado pela visita e pela sugestão. Vou ler e comentar. Abraço.
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