19.1.12

ESTOU ZANGADO COM A MORTE

Nascemos quando calha. Morremos sem querer. Os dois momentos mais importantes da nossa existência são momentos imprevisíveis. Um acaso total. Quando nascemos entramos num mundo novo. Deixamos o conforto do útero materno. De repente estamos a respirar. Um mundo adverso. Um ambiente pesado. Sentimos a gravidade. Assumimos a responsabilidade. Na morte deixamos tudo. Família, amigos, o ser, o ego, o sol e a lua. Deixamos de ser responsáveis. Perdemos a culpa. Ultrapassamos o medo. Num momento estamos vivos, num segundo estamos mortos. Passamos da luz à escuridão. Há quem diga que há luz para além da morte. Uma luz infinita que tudo redime. Não sei. Sei que entre o nascimento e a morte fica um curto intervalo a que chamamos vida. Sei que os dias que pareceram longos são hoje passado. E tudo passa a uma velocidade estonteante. Uma corrida descontrolada. Uma sucessão louca. Somos os velhos jovens de outrora. Só não perdemos tudo, porque na verdade nunca tivemos nada. No final ficam os vivos com as suas memórias. Ficamos com as confissões que não fizemos. Com as emoções contidas. Com as palavras por dizer. Saudade de nós próprios. Pena de não sermos eternos. Fica um luto feito de objectos acumulados à toa nas gavetas da casa de família. As fotografias sépia do álbum de casamento. Os postais ilustrados das viagens por fazer. Uns escritos eruditos para entreter. Fica uma herança para resolver. Alguns papéis para assinar. Uma relação de bens e uma partilha para efectuar. A luz há-de apagar-se num estertor que nunca entenderemos. A vida é uma incompreensão total. Fica este desabafo neste breve interlúdio em que ainda sou matéria.

As minhas mais sentidas condolências à família do Coronel José Luís Machado, falecido esta semana e uma das personagens centrais do meu livro biográfico “Há Biscoitos no Armário”.

15 comments:

Maria de Fátima said...

belíssimo, Jorge!

Anonymous said...

A luta para nascer, da qual não temos consciência, às vezes se repete na luta para continuar vivo, e não morrer! Mas há mortes súbitas e indolores, dormindo em alguns casos! Só nos resta desejar uma boa morte a todos os vivos, pois essa é a única certeza na vida: vamos morrer um dia. E com isso não nos conformamos!

byTONHO said...



O.amor.TE.dá
a.MORTE.tira!

"Quando morrer,
sentirei saudade de mim!"

BOA morte a todos nós, como disse o EDU.

:o)

Selena Sartorelo said...

Olá Jorge,

Emocionada homenagem a um ser querido que no expressar da condolência se faz tão bem entender. A vida que enquanto faz a diferença entre.

beijos,

Li Ferreira Nhan said...

Na real não mandamos merda nenhuma...
:/


Texto maravilhoso Jorge!

João Menéres said...

Para tentar um fim digno, esta semana já fui a três médicos e, para a semana, seguem-se as análises ao sangue e uma ecografia abdominal.
Depois, vamos a ver o que se segue ( talvez uma endoscopia e ainda depois a operação a uma hérnia umbigal ).

'nacleto said...

Pois é Jorge, além de ter gostado muito do teu texto sobre a nossa passagem por aqui, quero dizer fiquei tão chocada com o falecimento do meu muito querido amigo Coronel Machado. Conheci-o praticamente desde que nasci e tinha um carinho imenso por ele e uma amizade enorme. Hei-de lembrar-me sempre dele sobretudo tratando das suas queridas árvores e arbustos em volta da Torre F.

Isabel

Ana said...

Está mesmo bonito! Muito obrigada, um beijinho.
Ana Lobo Ferreira

Fatima Cristina said...

Oi Jorge!
Um texto digno de aplauso de pé. Nada mais real. Sempre estaremos prontos para viver, a nao ser que a morte nos venha visitar. E ela pode tardar, mas nunca falta!
Um beijo.

P.S.: Estou em Lisboa, mas dessa vez só mais por um dia numa semana cheia de trabalhos. Fico feliz por estar aqui, apesar de quase nao sair da sala de trabalho na Univ., pelo lindíssimo céu azul e pelos dias se muito sol que estou tendo toda esta semana. Em Graz o fria já estava de doer... Numa próxima vez marcamos outro encontro entre blogueiros amigos!

Jorge Pinheiro said...

Combinado Fátima. Uma boa estadia. Se precisar de alguma coisa não hesite.

Luísa said...

"A única certeza depois de nascer"...
Então, vamos enfrentar a perda como algo normal! Pena é sofrer pela saudade, pela falta do sorriso, pela ausência dos passos que entram, do abraço que aperta, do convivio partilhado...

Enfrentar a perda é "dor"!
Vamo-nos educando para a suprema despedida...
Beijinhos mil

Jorge Pinheiro said...

A TODOS O MEU OBRIGADO PELAS PALAVRAS. HÁ UM CERTO CONFORTO EM SABER QUE ESTAMOS TODOS NO MESMO BARCO. MAS É BOM OUVIR AS VÁRIAS SENSIBILIDADES E FILOSOFIAS DE ENCARAR O NAUFRÁGIO.

Luísa said...

Beijinhos, com colete salva vidas!

daga said...

Chego sempre atrasada aos momentos cruciais do blog... este texto, Jorge... não tenho palavras para o elogiar! Infelizmente comecei a ficar "zangada com a morte" muito cedo, como sabes,mas é difícil exprimir o que tu dizes tão bem: "as emoções contidas", "as palavras por dizer", aquele impulso de dizer isto ou aquilo a quem já não está cá para ouvir...
Acredito que haja "luz para além da morte"! beijo

Jorge Pinheiro said...

Graça: era bom.