Sou do tempo das cartas. Do telefone preto agarrado à parede.
Dos telegramas e do telex. O fax era milagre. A televisão era a preto e branco. Uma
caixa arredondada com lugar em cima da cristaleira. Válvulas iónicas e
transístores; gira-discos e gravadores de fita; cartridges e cassettes. Foi
assim até 1990. De repente o mundo ficou sem fios. Em Portugal há hoje mais
telemóveis do que habitantes. Os SMS sucedem-se. Fala-se ao jantar enquanto se come bacalhau com batatas. O telemóvel ganhou lugar à mesa. É parte da
família. O computador apareceu timidamente. Escondido nas caves. Dominado por
tresloucados informáticos com pronúncia em COBOL. Em breve o Personal Computer estaria
em cima da secretária de qualquer executivo de alta cilindrada. Primeiro só para
enfeitar. Depois para uso intensivo. Hoje as empresas trabalham mil vezes mais
depressa. Não há tempo para pensar. O PC obceca-nos as noites na volta dos
blogues. Na premência das redes sociais. Nos e-mails repassados com anexos em
PDF, zipados, em slide-show. A relação com o mundo ficou dependente da net. A
nossa vida está guardada para sempre. Tudo fica registado. A privacidade
acabou. Mesmo depois da morte, a memória persiste. A televisão agora é digital.
De alta definição. Grava-se o que não se vê. Vê-se do princípio quando o programa
já está a meio. Paga-se para ter 200 canais que não servem para nada. Boxes
para descodificar. Canais pagos para esquecer. Por esta altura, a música já não
se toca. Fabrica-se. Há programas para todos os gostos. Download pirata ou
compra na Amazon. Ouve-se directamente do PC. YouTube no iPhone. Jornais no
iPad. Revistas na internet. Livros no Kindle. Em cinquenta anos o mundo mudou.
Mudou muito. Hoje somos milhões de uns e zeros. Zeros sem uns. Uns sem outros.
Milhões que querem ser tudo. Quase nada de qualquer coisa. Um lugar na blogoesfera.
Uma alma no facebook. Um link para a eternidade. Um site no paraíso. Estamos a
criar personalidades digitais. Dependentes de “likes” e “unlikes”. Avatares
vitalícios, eternamente renovados. Existimos
no arquivo das “clouds”. Nunca nos vamos ver. Nunca nos vamos tocar. Estamos
condenados a sentir nos chips do imaginário electrónico. A sonhar nos murais
das redes sociais. A viver nos megabytes da memória RAM. Mais do que ser
importa estar. Mais do que conhecer queremos parecer. Mais do que convencer
preferimos iludir. Existimos para além da morte e morremos eternamente. O mundo
mudou muito. A questão é saber como vamos mudar nós.
13.3.12
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21 comments:
Um texto fora de série, Jorge.
Que merecia ser editado !
A Sábado orgulhar-se-ia de ter nos seus colaboradores de coluna o seu nome !
Um abraço com toda a amizade.
↓
Tudo "MUNDANDO" todo tempo!
"Eu já esqueci quem SOU,
não sei o que TENHO
e onde ESTOU...
Acho que estou dentro
de um dos pendrives,
mas qual?
Não me ACHO."
Bela crônica, Jorge!
Até a próxima mudança!
:o)
Subscrevo as palavras de João Menéres porque tu escreves de uma forma fabulosa e entendível, ao contrário de muitos(as).
Eu não mudei em nada e faço da internet apenas um espaço de lazer quando posso, quando me apetece e ou até o Tio Gaspar Patinhas o permitir:), onde leio e comento, não frequento qualquer rede social e a televisão tenho apenas o básico, sem codificações e mesmo assim dos 36 canais vejo apenas uns quantos.
Sou como sou e não sei deixar de ser quem sou e acima de tudo...a minha fora deste mundo de cabos.
Um abraço sincero e respeitador
Errata:a minha VIDA fora deste mundo de cabos.
Nossa! Que ótimo!
Texto pra lá de lúcido.
Um verdadeiro "chacoalhão"
nos nossos zeros,
nos nossos egobytes,
nas "personalidades digitais".
Sem sombra de dúvida somos quase nada de qualquer coisa.
Queremos Aparecer.
"Mais do que convencer preferimos iludir."
Jorge você foi no ponto!
Certeiro e cortante como sempre!
Belo texto, cheio de verdades. E é verdade também que o mundo mudou e as pessoas tiveram que se adaptar a essas mudanças. Caso contrário são tidas como como "pessoas antigas". Usando um linguajar ainda mais antigo: uns botas-de-elástico. Eu aqui me incluo e não me sinto mal assim. O meu telefone continua agarrado à parede (mudou de cor, é clarinho) e é o único que possuo. Tv odeio e de ano a ano ligo a que tenho em casa para ver se ainda está "viva". FaceBooks e afins passo longe e de Ipad Iphones ou lá que raio são essas coisas. Agora, Net gosto e muito. Aprendo. Aprendo bastante. De blogues também gosto, principalmente deste, onde venho amiúde. Dou-lhe os parabéns por ele e pela sua visão do mundo atual explicitada neste post. Agradeço-lhe.
↓
Onde anda a "fessora", numa hora destas?
Nunca a vi por AQUI.
Porque será?!
:o)
muito bom, Jorge!
pergunto-me tanto o que será ter menos de trinta anos hoje e não sei de resposta...mas busco-a
Bebo de cada palavra e sinto-me "embriagada" pelo aroma de lucidez! Corroboro deste sentir de vida vivida a correr, onde o sentir passou de essencial a efemero...Um mundo em mudança, composto por nós...e é em ´nós que a mudança estaciona temporariamente, nem que seja para lembrar o telefone preto de parede e o selo que se cola no canto superior direito do envelope.
Vamos vivendo de registos de mudança, num registo eterno de memória!
Beijinhos mil e muitos parabés pela reflexão!
Extra lúcido! Excepcional.
Olha a MENA !...
extra super fantastico verdade este teu escrito è de arrepiar, mas è assim mesmo!!!como voce sabe escrever e descrever o nosso mundo de hoje...
admiraçao!!!!!
Repito aqui o que disse no FB:
Mudou e vai continuar a mudar! Vamos dar conta de acompanhar????
Eduardo: não tenho resposta óbvia. Acho que os ser humano se adapta a quase tudo. A questão é o preço a pagar. Penso que vamos ter novas formas de emprego, novas emoções, novas formas de estar.
João: e conhece alguém na Sábado?
É curioso que na conversa do costume é: ta tudo na mesma, tudo igual, nada mudou ……
Quanto ao mundo ter ficado sem fios, acho que foi ao contrário eles apoderaram-se do espaço e sem eles nada funciona.
Beijo s
Na correria para ganhar tempos, estamos perdendo tempos.
Belo texto.
TEMPOS SEM FIOS.
Lembrei-me que também existem em Portugal mais casas que habitantes... Acho eu que já li isto..
Abraço
Pois é Tomás. Mas aí o filme é de terror!
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