23.4.12

CRÓNICAS DO HOSPITAL - NO BLOCO

Da cintura para baixo não sentia nada. A parte de cima ouvia, sentia, mexia. Um corpo dividido. Meio morto. Meio vivo. As vozes atrás da cortina sussurravam palavras incompreensíveis. Termos técnicos. Jargão clínico. Maçonaria anatómica. Um écran mostrava imagens a cores. Não percebi nada. Não tinha legendas. Tremia de frio. Mãos geladas. Dentes a tremer. Músculos em espasmo. A morte deve ser assim. Para baixo não sei. Não sentia nada. Ainda teria pernas? Ao lado passavam rapazes de touca alegres, discutindo futebol. As vozes atrás da cortina murmuravam que estava quase. Quase o quê?! Apeteceu-me perguntar, mas tremia de frio.. Não conseguia articular. Entrei no pânico da congelação. Percebi que estavam a furar. Seria um berbequim? Devia estar a esvair-me em sangue. Um desastre provocado. Uma invasão ao meu corpo... e ainda por cima vou pagar! Apeteceu-me fugir, mas não tinha pernas. Tentei mexer as nádegas. O rabo era um conceito meramente intelectual. Totalmente inamovível. Absolutamente irresponsável. Não tinha comando no corpo. Aliás, não tinha comando em nada. Podiam cortar-me às postas. Tanto faz! De repente acabou. As vozes por trás das cortinas calaram-se. Arrastaram-me para a maca. Elevador acima, elevador abaixo. "Tudo bem, rapaz. Correu tudo bem". "Tudo bem o quê?", balbuciei em estado de choque térmico. "A operação correu bem..." "Ah, sim, pois... e ainda tenho pila?"... 

30 comments:

chica said...

rsss...Teu jeito é demais... Temos que rir e a situação na hora é terrível, estamos à mercê deles... abraços,chica

Anonymous said...

Conclui-se que a anestesia foi parcial e, prtanto, foi uma intervenção de carácacá ... todavia, uma intervenção. Boa recuperação, Senhor Expresso, sem excesso de velocidade pelos túneis, tá?

Micaela said...

Cheguei agora à ilha e a primeira coisa que fiz foi vir ao blogue ver se já cá estava o primeiro capítulo. Estava e já me ri! Fico à espera da continuação...

Fatyly said...

Com esta crónica e remate sem resposta:) (não faço perguntas do foro pessoal) é que eu não esperava e se gargalhada pagasse imposto estaria falida de todo:)

Nunca levei a epidoral, mas deve ser um horror ouvir tudo e esse tal frio que dizem sentir, embora reconheça que seja menos maléfica do que uma anestesia geral.

O que importa é que correu bem, estás ai no conforto do teu lar e a contar como foi...As melhoras rapaz:)

Beijos extensíveis aos teus

João Menéres said...

Já falei como Jorge .
A voz bem disposta e enérgica como sempre.
Bom sinal !

Eu já levei com a epidoral DUAS VEZES !
Só me lembro de me ter sorrido para duas enfermeiras !
Tratou-se de retirar uns pólipos da bexiga. Dizem-me que disso ninguém morre...
Continuo vigiado duas vezes por ano, mesmo depois do médico urologista me dizer que tudo está bem.
Como tenho um aneurisma na aorta, se calhar é disso que desta vida me despedirei...
Será ainda a sorrir para uma enfermeira ?

LOL

Luísa said...

Quando nos rendemos aos demais...com confiança total nas mãos que nos pegam, mexem e remexem...
Perdemos a noção do real estado das coisas...perdemos a total privacidade...mas não perdemos a consciência nem o aguçado sentido critico. Ganhamos vida nas mãos de quem desconhecemos e em quem confiamos! Ganhamos admiração por todos aqueles profissionais.
Não lhe perguntaram se preferia música clássica ou contemporãnea? não lhe perguntaram se Pink Floyd estaria bem?
Mas, o que importa mesmo é que "a operação correu bem!"
Melhoras francas e céleres...

byTONHO said...



"As pupilas ficaram felizes
quando reviram o pila?!"

SAÚDE!

:o)

António P. said...

Espero bem que ainda a tenhas, Jorge.
Abraço

Maria de Fátima said...

havias de conversar um dia com uma senhora de oitenta e seis anos que hoje mesmo foi operada "assim" para colocar uma prótese (uma cabeça nova no fémur)
divertida é o que te posso dizer que ela transmite... é minha mãe, sim, Jorge, mas filha de peixe nem sempre sabe nadar...:)

Jorge Pinheiro said...

João: felizes dos que ainda conseguem ver as enfermeiras. Eu estava "p'ra lá de Marraquexe.

Jorge Pinheiro said...

Tonho: o pila ou a pila?

Jorge Pinheiro said...

Chica: ainda bem que está a gostar. Isto vai ser "de morte".

Jorge Pinheiro said...

António: mas está muito debilitada... depauperada (como diria o Roberto).

Jorge Pinheiro said...

Anónimo: caracacá o tanas. É claro que há coisas bem piores. Essas nem todo o sentido de humor resolve. Mas, atenção, como diz a Fatyly, não sei se não é melhor apagar as luzes todas

Jorge Pinheiro said...

Luísa: temos de ter confiança. A verdade é que nem pensei muito nisso. Até porque fui a um médico absolutamente ao calhas. Acho que tive imensa sorte.

Jorge Pinheiro said...

Mikas: ainda bem que te faço rir. A ilha está no mesmo sítio?

Jorge Pinheiro said...

Fátima: e a tua mãe está bem? Sabes, eu sou hipocondríaco. Só tenho hipótese de aligeirar construindo histórias. Ia para o bloco a pensar no que iria escrever. Ajuda muito. Os blogues são fantásticos!

Li Ferreira Nhan said...

Jorge não percebia nada do que foste acometido. É outro universo.
O nosso amigo até explicou.
Mas confesso; não percebi.
Mas, claro, fui ter ao google e olha aprendi muuuito!
rsrsrsrs

Hoje, aqui fartei me de rir!
Ainda bem que teu senso de humor e a tua escrita continuam iguais!
Há cada pérola!!!
Só você! Continua! Tá ótimo!
Melhoras viu!
Beijos pra vc e pra Fernanda.

Jorge Pinheiro said...

Li: no fim da série explico os detalhes científicos. Nos blogues aprende-se muito :))

Fatima Cristina said...

Jorge,
Você descreveu tudo de uma forma bem brincalhona. Adorei "O rabo era um conceito meramente intelectual." Morri de rir...

Melhoras!

Beijos

Mena G said...

Qualquer dia já sai em arco, vais ver! :)))

Jorge Pinheiro said...

Mena: aprendi umas anedotas de urologistas... Tipo chichi cócó :))

Jorge Pinheiro said...

Fátima: sem humor estamos mortos :))

Anonymous said...

Podes continuar com a escrita!!! Ou será q terás de ser perfurado a mais alguma coisita para q essa inspiração não te falte??? Boas melhoras sr. hipocundriaco!!!
IsaMac

Jorge Pinheiro said...

Nunca se sabe. As perfurações às vezes encontram a raiz da inspiração. E pode evaporar-se :))

peri s.c. said...

Hospital : de motorista a passageiro, credo.

myra said...

é uma bendiçao ter humor!!!eu me lembro numa das minhas 20 operaçoes,ja meio zombi, o medico que dizia" meu Deus nao encontro a veia, que fazer?" ai eu disse" vai pr'a puta que te pariu e corta e faz o que tem que fazer"!! depois da operaçao, o medico me disse que quem me salvou, fui eu, xingando:)))
estou feliz que voce està e estarà melhor que nunca, e tuas descriçoes sao realmente, divertidas:)))
amo-te!!!

Li Ferreira Nhan said...

Essa é boa! A Myra é demais!
:))

Jorge Pinheiro said...

Myra: excelente. Essa só você. Já é preciso muito treino :))

Jorge Pinheiro said...

Mauro: nem conduzir posso!