11.2.17

COMIGO MESMO - LVIII (FIM)

Quando, depois de tantos anos, penso no Liceu, a memória é atraiçoada pelas sensações. São cheiros inolvidáveis. O toque irritante da campainha. O ranger do estrado quando o professor de inglês, apelidado de “padeiro”, passava na sua sólida rotundidade. O Sol que entrava pela janela. O chefe de turma que distribuía estaladas sem qualquer razão aparente e arrotava com cheiro pestilente a alho recozido. O estúpido colega da frente que não deixava copiar. O arranhar do giz no quadro preto. As permanentes faltas de material. Aquele exame de latim que nunca mais acabava. As férias grandes que teimavam em chegar.
O Liceu de Oeiras sempre foi um liceu com grande liberdade. Talvez o facto de estarmos na Linha de Cascais. De o sol brilhar. Do mar estar logo ali. Talvez tudo isso tenha influenciado. A verdade é que as fugas para o Motel e, mais tarde, para o Pérgula, as idas à praia, os intervalos clandestinos passados a fumar cigarros nas traseiras do ginásio, os namoricos platónicos por entre as acácias em flor e a exploração das grutas dos terrenos militares contíguos, tudo isso era tão ou mais importante do que a aprendizagem oficial.
Os colegas nem todos eram bons rapazes. Nem de todos ficámos amigos. Alguns desapareceram completamente da nossa memória. Outros mantiveram-se anualmente nas celebrações natalícias que insistimos em fazer. Outros, ainda, ficaram amigos para a vida.
Os anos de liceu são anos de profunda transformação. Entramos envergonhados de calções. Saímos homens de barba rija. São anos de integração social. De iniciação política. De formação moral. A nossa personalidade molda-se para sempre. Viajar pelos tempos de escola é revisitar a nossa autenticidade. Somos o que éramos. Jamais deixaremos de o ser.
PS: na foto, o Liceu Nacional de Oeiras em 1952 (ano da inauguração)

8 comments:

João Menéres said...

Tão excelente é o seu texto que nem me atrevo a rememorar os meus tempos no D.Manuel II !

PARABÉNS, JORGE !

Li Ferreira Nhan said...

Tão excelente são sempre tuas escritas!
Obrigada por compartilhar, voltei também comigo mesma. Essa é a excelência de uma narrativa; quando consegue nos transportar para algum lugar, mesmo que esse lugar esteja tão perto ou tão escondido.
Pena que acabou.

Jorge Pinheiro said...

Obrigado aos leitores. Pode ser que haja segunda temporada. Para já fica por aqui.

João Menéres said...

Então, tenho a esperança de ver a continuação do seu EU, COMIGO PRÓPRIO !

Li Ferreira Nhan said...

Jorge, tenho pensado muito na Myra, ela iria amar tua história.
Hoje estive a reler a tua biografia dela... Que trabalho mais lindo, mais carinhoso; que obra de literatura e arte.

Uma grande pena a Myra estar calada para nós, triste por ela não ter mais acesso a internet.

Jorge Pinheiro said...

Mas porque não tem acesso?!

Li Ferreira Nhan said...

Porque também não sei.

Fatyly said...

Adorei esta compilação de memórias de um Portugal que desconhecia tendo como protagonista um jovem...tu...hoje já avô:))))

Obrigado por tão bela biografia.

Beijos