24.12.12

VACA ROMPE SILÊNCIO

Remetida a um Convento Carmelita, a vaca tem-se remetido a um profundo e prudente silêncio. Na época a vaca chegou a ser entrevistada pelos doutores da Igreja, Mateus, Marcos, Lucas e João. Mas nenhum dos entrevistadores contou a mesma versão. Esta adulteração da verdade muito incomodou a pacífica vaca que ficou a ruminar na torpe manipulação humana e jurou não mais abrir a boca sobre aquele jubiloso dia. No entanto, e face às afirmações do burro e do camelo, a vaca não pôde deixar de vir a terreiro repor a verdade e afirmá-la bem alto para glória do Senhor.
“O burro é um recalcado e mete-se nos copos. Distorce a verdade para se vingar. É um animal rancoroso. Põe aquele ar pesaroso, mas é um verdadeiro perigo. O camelo é um exibicionista nato. Sonha com califas e haréns, oásis de mel e tâmaras. É um deslumbrado. Não passa de um iludido que vive de fantasia num deserto de ideias. Em verdade vos digo: o burro e o camelo nem sequer lá estavam. O burro tinha ido à reunião semanal dos Alcoólicos Anónimos e o camelo tinha sido detido pela Mossad por suspeita de colaboração com o Hamas. Eu e só eu é que estava presente, como, aliás, demonstra a fotografia junta. Numa coisa o burro tem razão. Era Agosto. Mas isso que interessa! O que interessa é que o Menino nasceu em casa, no meio de palhinhas. José era carpinteiro e a Senhora se não era virgem parecia bastante. O menino era um santo. Fazia montes de milagres e estava sempre pronto a satisfazer qualquer pedido. Bastava pedir. Foi isso que o tramou. Naquela manhã do dia 14 do mês de Primavera de Nissã o procurador da Judeia, Pôncio Pilatos, saiu para a colunata coberto entre as duas alas do palácio de Herodes. O Sol queimava horrivelmente lá no alto, batendo com força nos mosaicos brilhantes. A dor de cabeça era horrível. As fontes latejavam desde manhãzinha. O procurador estava de novo com uma terrível enxaqueca. O réu aguardava vestido com uma túnica azul-clara, rasgada e suja. As mãos estavam amarradas. Um ar vagamente ausente. Tinha fama de milagreiro. Pilatos pediu-lhe uma cura para as dores de cabeça. Essa, porém, não era a especialidade de Yeshua. Tentou, tentou, mas nada. Se fosse uma cura da lepra ou mesmo uma ressurreição, ainda dava. Agora enxaquecas...! Foi isto perdeu o Menino, bendito seja o seu nome. A verdade é que se não fossem as enxaquecas do procurador não haveria Natal.”
A vaca calou-se abrupamente e seguiu a manada em direcção ao convento. Nunca ninguém mais a viu!

Post editado no Expresso da Linha em Dezembro de 2008.

3 comments:

daga said...

muito interessante esta versão da vaca... como ela é sábia: "...se não fosse[m]...[d]o procurador não haveria Natal."

Li Ferreira Nhan said...

Astuta, aguçada e inteligente como toda vaca é e sempre será!
Agora sim, toda a visão da alma feminina. Seu poder de síntese, sua apurada observação, sua discreta onipresença, sua voz clamada quando a justiça se faz necessária. E como reza a história, foi trancada num convento, quiçá junto com a outra (portuguesa) aquela que guardou os segredos da virgem e morreu com eles.
A vaca, esperta, misturou-se ao rebanho e no anonimato virou lenda. Como a outra de má fama e profissão duvidosa que dizem amante do menino quando se fez homem.
2x0 para as fêmeas. De todas as espécies!

myra said...

ah, quanto confusao!!!!