A casa da Rua
Ferreira Lapa, em Lisboa, era enorme, mas toda a gente se acumulava numa
salinha mínima, onde se almoçava, se jantava e se passava a noite. Não sei bem
a fazer o quê, porque ainda não havia televisão. Mesa, quatro cadeiras (ainda
retenho duas delas, no anexo lá detrás), um sofá cama, um armário de apoio e um
frigorífico Frigidaire que está hoje no “Barracão” da casa de Nova Oeiras,
ainda em pleno funcionamento.
Naquela sala
eu voava. Tudo começava com um misterioso cheiro a borracha queimada vindo não
sei de onde. Os meus pés levantavam do chão e eu subia devagar enquanto
pedalava no vazio para dar propulsão à ascensão. Lá de cima via o candeeiro de
ferro forjado (que está hoje no Casal de Santana, perto da Sertã), a mesa e as
quatro cadeiras muito pequenas cá em baixo e o sofá-cama grená com flores
bordadas a várias cores. Voava sempre que queria. Nunca tive a consciência de
que fosse uma coisa exótica. Inspeccionava os cantos da sala bem lá em cima,
colado ao tecto. Era uma coisa que eu achava perfeitamente normal, mas só
acontecia naquela sala e quando eu estava sozinho. Deve ter sido assim até aos
meus seis anos ou sete anos. Depois, subitamente, deixei de voar. Durante anos,
talvez até aos meus dezasseis anos, sentia o mesmo cheiro de borracha queimada,
que quase me hipnotizava, mas já não conseguia levantar voo. Toda a vida fiquei
carente dos voos que me libertavam daquele rés-do-chão cinzento. Sei hoje que
tudo isto tem uma explicação psicológica, mas eu tenho a certeza que voava… e o
resto é conversa.
3 comments:
Acredito que essa história de casa grande onde todos acabam s reunindo num canto menor é regra. Na casa do meu avô paterno também.
O Jorge pode não levitar, mas os seus escritos fazem-nos levitar nesta carruagem tão esecial do EXPRESSO DA LINHA !
Acredito que a memória olfativa é a mais marcante!
A despeito de qualquer explicação psicológica, tenho a mais absoluta certeza que voce voava.
Post a Comment