23.12.12

ENTREVISTA COM O BURRO

O burro tem sido uma das figuras mais esquecidas e desprezadas de todo o presépio. A vaca, os carneirinhos, até os camelos atingiram dimensão bíblica. O burro, porém, não passa de figura de estilo remetido a um silêncio hipócrita pelos exegetas do Novo Testamento, talvez por recearem comparações menos felizes com a sua própria inteligência.
Fomos encontrar o burro amargurado a retouçar um par de cenouras, tristonho e revoltado com este esquecimento evangélico. A entrevista foi rápida e esclarecedora.
“Em verdade vos digo. Fui eu que transportei a Senhora e José à urgência do hospital de Belém. Ela estava muito grávida há uma série de meses. Aquilo acontecera de repente. Os vizinhos diziam que ela concebera sem pecado e olhavam de lado para José. O pobre carpinteiro andava com a cabeça cada vez mais pesada e, em desespero, pregava pregos à toa em qualquer madeira que lhe aparecia à frente. Naquele dia de Agosto fazia um calor de rachar. O Natal já fora há muitos meses, A Senhora berrava. José, histérico, corria de um lado para o outro e só conseguia balbuciar “valha-me a Virgem Maria, valha-me a Virgem Maria”. O hospital fervilhava de agitação. Parei em contra mão. José corria desaustinado: “ai minha Virgem Maria, ai minha Virgem Maria”. À falta de melhor registaram a Senhora como Virgem Maria. O miúdo nasceu nas calmas. Veio logo a falar três línguas: aramaico, latim e grego clássico. Um sobredotado! Cá fora os familiares da Senhora estavam impedidos de entrar. Eram palestinianos. Um ainda se fez explodir de satisfação... José nunca mais foi o mesmo. O miúdo começou rapidamente a mandar lá em casa. A Senhora deixava-o fazer o queria. José não tinha mão nele. Ainda adolescente apanharam-no a andar sobre a água. Outra vez multiplicou os pães. Só disparates. Foi demais. Acabou internado num colégio Essénio. Pior não podia ter sido. A partir daí começou a falar na terceira pessoa e a pregar no deserto. Claro que as insolações não lhe fizeram nada bem. Um dia em que estava mais desidratado entrou num templo e atirou-se aos vendilhões. Partiu a loiça toda. O resto já todos sabem. O rapaz meteu-se na política e acabou mal. No Médio Oriente a política acaba sempre mal!”
O burro calou-se surpreendido por ter falado tanto. Lá atrás o presépio canta gloriosos hinos de louvor em alemão, entre estrelas prateadas made in Taiwan. Pessoas aos magotes sorriem a crédito na euforia das compras. É Natal para toda a gente. Só o burro sabe que não!
 
Post publicado no Expresso da Linha em Dezembro de 2008.

13 comments:

João Menéres said...

Vou rememorar o seu texto à tarde, Jorge !

Anonymous said...

Maravilhoso. Não tinha lido em 2008. Vou postá-lo amanhã no Varal. Muito bom.

Li Ferreira Nhan said...

Nossa Jorge, que maravilha!
Atemporal!

Li Ferreira Nhan said...

Esta no FB?
Se não, já aviso que vou levar!
:)

Fatyly said...

Eu tinha imprimido esta pérola quando revirei o teu blogue.

5****

Bom Natal e não sejas burro porque tens aí uma "menina Jesus"...melhor dizendo do "ai jesus":):)

Beijos a todos

daga said...

bem o que é que eu digo... tens uma imaginação prodigiosa, conhecimentos vastos, escrita inigualável... só te falta a fé para seres perfeito ;)

vieira calado said...

Olá, como está o meu amigo?
Gostei da entrevista...
Venho expressamente desejar-lhe um Bom Natal!
Um abraço.
Um poema de Natal em
http://vieiracalado-poesia.blogspot.com

Jorge Pinheiro said...

Graça: para ser perfeito falta-me quase tudo; para ser imperfeito, quase nada.

Jorge Pinheiro said...

Olá Vieira Calado. Um Bom Natal tb para si. Abraço.

myra said...

fantastico texto...è sim aqui sempre acaba mal, isto é nunca acaba...

daga said...

não sejas tão modesto :))
Boas Festas!!
beijo

Jorge Pinheiro said...

Graça: essa é mais uma das minhas imperfeições... não sou modesto :))

Anonymous said...

Adorei estes seus escrito ,principalmente do burro
bom 2013 um bejo zica