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28.12.18

ATÉ QUANDO


Até quando aguentaremos mais. As costas que doiem, a próstata que descai, as tendinites que avançam, uma fadiga secular que nos invade. Até quando aguentaremos mais. Uma vida invadida de dores, uma alma frágil de esperança. E no entanto a cabidela de galinha deu-me vontade de viver. Talvez por minutos. O tempo de uma digestão. Os minutos de uma exaustão. Sofro de pausa. Pouso no intervalo de qualquer coisa que nada faz senão prazer interrompido. E sou feliz quando a hora recomeça e o dia invade o recomeço da hora.

29.11.17

NAMORAR

Namorar parece uma coisa simples, mas não é. À medida que a idade avança começam muitos problemas. São elas que estão traumatizadas, eles que têm pressa a mais, a conversa que fica sem nexo, o jantar que fica frio. E, no entanto, aos 60 anos todos precisamos uns dos outros. Lembro que quando era jovem tinha vergonha de me declarar. Hoje não tenho nenhuma vergonha. O resultado é o mesmo. A empatia do amor não vem da desesperança que sentimos pela vida. O amor é a esperança que temos pela vida. Serei sempre um romântico disfarçado de homem. Um homem desorientado perdido de amores e carente de afectos. A vida acaba e ficamos sem saber o que foi tudo isto. Uma breve incursão sobre o tempo? Um reduzido espaço para criar descendência? Um amor fugaz para distrair a morte? Uma morte súbita sem charme nem dor?

11.2.17

COMIGO MESMO - LVIII (FIM)

Quando, depois de tantos anos, penso no Liceu, a memória é atraiçoada pelas sensações. São cheiros inolvidáveis. O toque irritante da campainha. O ranger do estrado quando o professor de inglês, apelidado de “padeiro”, passava na sua sólida rotundidade. O Sol que entrava pela janela. O chefe de turma que distribuía estaladas sem qualquer razão aparente e arrotava com cheiro pestilente a alho recozido. O estúpido colega da frente que não deixava copiar. O arranhar do giz no quadro preto. As permanentes faltas de material. Aquele exame de latim que nunca mais acabava. As férias grandes que teimavam em chegar.
O Liceu de Oeiras sempre foi um liceu com grande liberdade. Talvez o facto de estarmos na Linha de Cascais. De o sol brilhar. Do mar estar logo ali. Talvez tudo isso tenha influenciado. A verdade é que as fugas para o Motel e, mais tarde, para o Pérgula, as idas à praia, os intervalos clandestinos passados a fumar cigarros nas traseiras do ginásio, os namoricos platónicos por entre as acácias em flor e a exploração das grutas dos terrenos militares contíguos, tudo isso era tão ou mais importante do que a aprendizagem oficial.
Os colegas nem todos eram bons rapazes. Nem de todos ficámos amigos. Alguns desapareceram completamente da nossa memória. Outros mantiveram-se anualmente nas celebrações natalícias que insistimos em fazer. Outros, ainda, ficaram amigos para a vida.
Os anos de liceu são anos de profunda transformação. Entramos envergonhados de calções. Saímos homens de barba rija. São anos de integração social. De iniciação política. De formação moral. A nossa personalidade molda-se para sempre. Viajar pelos tempos de escola é revisitar a nossa autenticidade. Somos o que éramos. Jamais deixaremos de o ser.
PS: na foto, o Liceu Nacional de Oeiras em 1952 (ano da inauguração)

10.2.17

COMIGO MESMO - LVII


Desde que vim para Nova Oeiras sempre andei acompanhado por cães. Primeiro foi o Nero, um “Serra d'Aires” de pelo preto e encaracolado. Era como se fosse um irmão. Viveu quase toda a minha adolescência, até começar a fazer disparates. Como cão-de-guarda que era, teimava em trazer para casa qualquer rebanho que visse. Naquele tempo havia ainda ovelhas a pastar na Quinta das Palmeiras e mesmo em Nova Oeiras. Por mais de uma vez, arrastou o rebanho inteiro tentando fazê-lo passar o portão da moradia, perseguido pelo pastor impotente e por dois cãezitos pequenos enervados a ladrar atrás. O pior foi que o Nero começou a morder. Primeiro foi um amigo meu que, na brincadeira, me ameaçou com um pau. Em minha defesa, o Nero perfurou-lhe o braço. Depois foi o carteiro e o polícia que ficaram com farda rasgada. Finalmente, numa rara discussão com o meu pai, ele levantou a mão ameaçando dar-me um correctivo e zás! O Nero trespassou-lhe a mão de um lado ao outro. Acabou enviado para uma unidade militar, onde estavam a fazer experiências com cães de ataque de raças portuguesas. Ao que soubemos depois, atacou o tratador e filou o capitão da unidade. Julgo que acabou fuzilado.
A seguir veio o Athos, um “Setter” irlandês de grande porte, pelo ruivo e completamente despassarado. Duvido que alguma vez tenha percebido quem eram os “donos”. Sempre a correr furiosamente por Nova Oeiras, acabou por desaparecer não tinha ainda três anos, talvez atropelado, roubado, ou apenas desaparecido em combate. Nunca soubemos.
A seguir veio o Bruce. Um “Pastor-Alemão” castanho e preto. Foi no Verão de 68. Quase com 17 anos, completei o 7º ano do liceu. No ano seguinte entraria para a Faculdade de Direito. O Bruce foi-me oferecido por uma namorada de Verão. Chamei-lhe Bruce em homenagem ao Jack Bruce, baixista e vocalista dos The Cream, a banda que mais ouvia na época. Era um cão que impunha respeito. Não andava à solta. Tinha de ficar preso à noite. Andava comigo sempre de trela. Fizemos uma boa parelha durante alguns anos. Depois o cão morreu, julgo que com problemas cardíacos.
Estes foram os três cães da minha adolescência. Depois, já muito mais tarde, ainda veio o Guri, um rafeiro super simpático que acompanhou a infância dos meus filhos e, finalmente, o Bezunga, um “Serra da Estrela” arraçado de “Pastor-Alemão”, animal de grande porte, com quase 60 quilos. Morreu, faz agora três anos. Sofreu muito nos últimos tempos de vida. Alergias, doenças de pele e finalmente cancro. Passámos dois anos de veterinário em veterinário. Acabou por ter de ser abatido. Fui eu que dei a ordem. Fiquei a segurá-lo até ao fim e depois chorei muito.
O problema dos cães é a pouca duração, a quantidade de doenças que acumulam, o afecto que lhes temos e as saudades que ficam. Não faço tenções de ter mais cães.

9.2.17

COMIGO MESMO - LVI

Desde muito novo sempre tive uma grande convivência com animais. Não que houvesse muitos bichos lá por casa. Em Lisboa, lembro-me vagamente de um gato tigrado, devia eu ter uns 6 ou 7 anos. Lembro-me de o atirar ao ar compulsivamente, cada vez mais alto, até bater no tecto. Adorava ver como ele caía sempre de pé. Ainda hoje me fascina essa capacidade dos felinos.
A minha principal convivência com bichos foi no Instituto Ricardo Jorge, então ainda a funcionar no Campo de Santana, no começo da Rua Gomes Freire. A minha mãe levava-me muitas vezes para lá e, enquanto ela contava bactérias ao microscópio, estava eu nas traseiras do edifício a brincar com os animais que, em breve, iriam servir para experiências por inoculação.
O Sr. Zé (ou seria Vicente?), o encarregado, era um homem forte, ligeiramente obeso, com bigode preto, sempre de bata cinzenta. Tanto tratava dos bichos com desvelo, como os matava logo a seguir com a maior das descontrações. Às vezes eu trazia para casa cobaias, coelhos ou ratos brancos. Vinham em gaiolas, ficavam uns dias e voltavam para o Instituto para o triste fim que os aguardava.

6.2.17

COMIGO MESMO - LV


Quando a sirene da Fundição tocava às 13h o meu cão Nero, um Serra d'Aire cabeludo, era lançado à minha procura com a trela encarnada engatada na coleira. Era a maneira de eu saber que tinha de acabar o jogo das três covinhas que disputava desde as 10 da manhã por debaixo do Bloco B, de Nova Oeiras, ou de terminar a corrida de carrinhos Dinky Toys à volta da Alameda. Precipitava-me para casa a engolir o bife com batatas fritas e avançava para o Liceu ainda a ruminar a maçã reineta.
O Liceu era feito de corredores compridos, vidros e muito eco, gritado na vozeria insegura e exibicionista da juventude irrequieta. O reitor, o Dr. Mexia, fazia da “posição de dez para as duas”, uma maneira de estar na vida. Fiscalizava diariamente a entrada para as aulas. Repreendia os jeans coçados dos rapazes e as miúdas pintadas ou com saias acima do joelho. Muita gente odiava o reitor, conotando-o com a repressão do regime. Não sei. Sei que era o símbolo do poder, da moral e dos bons costumes. Coisas importantes, mas para as quais nos estávamos completamente nas tintas.
PS: na foto, eu a minha mãe e o cão Nero ainda bebé.

4.2.17

COMIGO MESMO - LIV


O uivo da sirene da Fundição de Oeiras tocava logo de manhã, ao almoço e ao fim da tarde… pontualmente. Aliás, durante toda a minha adolescência fui perseguido por aquele uivo fabril. Um uivo que chamava os operários de bata azul e que nos lembrava constantemente as horas a escoarem-se. Talvez seja por isso que recuso relógios e que ainda hoje tenho vómitos quando ouço uma simples ambulância ou um carro de bombeiros.
A Fundição (como era conhecida), hoje uma ruína votada ao abandono na expectativa de uma qualquer especulação imobiliária que a reabilite, era uma unidade industrial de elite no panorama nacional. Iniciada ainda no século XIX, na lógica da Revolução Industrial, como simples metalúrgica, passou a metalomecânica em 1921.
Entre 1956 e 1966, já sob a direcção de António Cardoso dos Santos, conhecido por “o Cardoso”, grande amigo de Ricardo Espírito Santo (do BES), que tinha conhecido em Paris e a quem se diz ter prestado um grande favor (fala-se de questões de protecção relacionadas com o período nazi e a ocupação de França) e, mais tarde, amigo de Salazar. A Fundição conheceu uma grande expansão (inclusivamente internacional).
Fabricava fogões, máquinas de lavar, banheiras, aquecedores, equipamento e, mais tarde, armamento militar. Em 1974 foi nacionalizada, na sequência da Revolução do 25 de Abril. Nos anos 80 (pouco tempo antes de fechar) ainda daqui saíram muitas granadas de morteiro para a guerra Irão/Iraque, que, aliás, seriam vendidas a ambos os beligerantes. Depois foi definhando, vítima de má gestão. Acabou por encerrar no final da década de 80.

3.2.17

COMIGO MESMO - LIII


Em Fevereiro de 62 a minha vida mudou radicalmente. De filho único isolado e protegido em Lisboa, passei, no espaço de 2 ou 3 meses, a gandulo de rua. Viver numa moradia é estar permanentemente lá fora. É só abrir a porta. Não há elevadores, escadas, obstáculos. A porta é a única fronteira. Uma fronteira muito ténue.
Comecei a conhecer gente. Julgo que o primeiro que conheci foi o Jaime Abreu. Ia eu de bicicleta e um rapaz gordinho chamou-me e pediu para dar uma voltinha. Daí para a frente fui-me integrando na comunidade existente, o que nem sempre foi fácil.
Entretanto havia o Liceu Nacional de Oeiras, que, naquele tempo, abrangia toda a Linha de Cascais (o Liceu de S. João só foi inaugurado em 1968). Um mar de gente inundava todos os dias aqueles corredores barulhentos. Tínhamos dezenas de colegas de todas as proveniências. Uma mistura saudavelmente democrática e socialmente relevante: desde “queques da Linha” e “meninos bem de Cascais”, aos alunos que vinham detrás da Linha, de Laveiras, de Barcarena, de Matos Cheirinhos ou mesmo de Varges Mondar.
As miúdas tinham aulas de manhã. Os rapazes só tinham aulas à tarde. O cruzamento era à saída. Nós começávamos às 13,30h e íamos assistir à saída talvez levados por um impulso... romântico.

2.2.17

COMIGO MESMO - LII

Os primeiros habitantes de Nova Oeiras não nasceram cá. Vieram colonizar um bairro que nascia. Nascia moderno, planeado, amplo e diferente. Na época ninguém tinha consciência disso. Parecia um “far-west” de Lisboa.
Quando cheguei a Nova Oeiras faltavam ainda construir duas Torres. Parte do Centro Comercial ainda tinha andaimes. A Alameda era feita de pó. O alcatrão só veio dois ou três anos depois. Era um pó grosso puxado a vento norte que infestava as poucas moradias existentes e exasperava as donas de casa mais exigentes.
Não havia jardins, nem relva. O bosquete era uma promessa em crescimento. As árvores não passavam de finos prumos ancorados a estacas de suporte na expectativa de virem a dar sombra um dia mais tarde. As cobras circulavam livremente nos baldios onde hoje estão os campos de ténis.
Aqui era a Quinta Grande, dos Marqueses de Pombal. O terreno era duro e agreste. Não era cultivado desde que a filoxera, algures por volta de 1860, destruíra as vinhas do Carcavelos. Foi nessa terra dura que desenhámos por entre as ervas bravias os caminhos de pé posto. Caminhos que ainda hoje se mantêm por entre as árvores que entretanto cresceram. Por todo lado havia fósseis. Conchas e cornucópias, inegáveis testemunhos de que o oceano estivera aqui. Vestígios ancestrais que ainda hoje conservamos e que bem poderiam estar num “museu atlântico”.

1.2.17

COMIGO MESMO - LI


Algures por volta de 1958/59, a minha mãe concorreu através da Caixa de Previdência do Ministério da Educação Nacional, de que era sócia com o nº 17845. A ideia inicial era comprar uma casa própria. Ela não estava muito esperançada. Ficou em lista de espera e não estava a pensar ser chamada tão cedo. Mas passado pouco tempo chamaram. Havia possibilidade de empréstimo. Talvez a ideia fosse uma casa em Lisboa. Mas um colega da minha mãe, o Dr. Conceição Correia, que tinha já casa em Nova Oeiras, na Rua B, mais tarde Av. António Salazar e hoje Av. Salvador Allende, uma casa quase ao pé da Estação da CP, entusiasmou-a a vir para cá. Era perto do comboio. Um bairro a nascer. O Liceu também não era longe… 
O lote escolhido foi o 138, da Rua A (hoje Alameda Conde Oeiras, nº 65). O meu pai, como já referi, estava em Paris a frequentar a Écolle de Guerre. Acabou por recair quase tudo sobre a minha mãe. O pedido acabou por ser atendido em 20 de Maio de 1960.
O terreno, custou 226.000$00, despesa não suportada pela Caixa. O empréstimo (autorizado a 23 de Março de 1961) para a construção da casa propriamente dita, foi de 434.000$00. Um empréstimo no regime de propriedade resolúvel, ao abrigo do Decreto-Lei nº 40.674, publicado no Diário do Governo de 6/7/56. O total foi de 767 contos – terreno, construção e despesas burocráticas diversas. A Escritura de Compromisso entre a minha mãe e a Caixa foi celebrada em 7 de Abril de 1961 (Cartório Notarial da Rua do Crucifixo, em Lisboa).
Este é o meu mundo. É nestes 905 metros quadrados que vivo. Que ponho e disponho. É o meu reino. Uma casa que nasceu e cresceu. Transformou-se e adaptou-se. Renovou-se e redecorou-se. Uma casa de família ainda nova e que, no entanto, já é velha. Velha de sentimentos e de presenças. De mortos e de vivos. Quanto mais tempo será da família? Uma interrogação que não cessa de me atormentar nestes tempos de crise económica.

31.1.17

COMIGO MESMO - L

Em Junho de 1961, com 9 anos, fiz o exame de admissão no Liceu Camões, mas fui logo transferido para o Liceu de Oeiras. A casa de Nova Oeiras estava em fase de acabamento e não sabíamos quando seria a mudança. Acabou por ser só em Fevereiro de 1962. Como não havia vaga em Oeiras, fiquei na Secção de Algés, a funcionar precariamente no Palácio Ribamar, onde entre 1920 e 1928 funcionou o casino “The Splendid Foz Garden". Hoje, depois de adquirida pelo Município..., aloja a galeria municipal, um posto de turismo, biblioteca e sede do Centro de Dança de Oeiras.
As instalações eram tão precárias que chovia dentro da sala, ao ponto de termos de abrir guarda-chuvas. Todos os dias apanhava o autocarro na Rua Luciano Cordeiro (perto da Ferreira Lapa) e ia até Algés. Um trajecto de meia hora que eu fazia sozinho, revelando um grau de autonomia, para um filho único de 10 anos, digno de registo. A partir de Fevereiro de 62, já a morar em Nova Oeiras, ia de comboio para Algés. Renovada prova de grande autonomia.
PS: na foto, o Palácio de Ribamar.

30.1.17

COMIGO MESMO - XLIX

Mas, enquanto a minha mãe andava atrás das bactérias, o meu pai também não parava quieto. Logo em 1948, ainda Tenente, fez o curso de Estado-Maior (a funcionar em Caxias, como já referi). Depois nasci eu, em 1951. Mas isso não o impediu de, na qualidade de chefe da Repartição de Operações e Organização da Divisão NATO, fazer parte da equipa que, entre 1953 a 1955, planeou e conduziu as primeiras manobras da dita NATO realizadas em Portugal (Santa Margarida...).
Em 1958, o meu pai foi frequentar a Escola de Armas Especiais dos USA, na Alemanha, onde se especializou no emprego de armas nucleares. Uma área completamente nova para um militar português. Como se vê, a vida lá em casa era perigosa. Entre bactérias e fissão nuclear, a escolha não era fácil.
De 1959 e 1961, o meu pai frequentou a Écolle Supérieur de Guerre, em Paris, tendo coincidido com a estadia da minha mãe durante 6 meses também em Paris, nos estágios do Pasteur e Fournier. Foi nessa altura que a casa de Nova Oeiras estava a ser projectada. Foi em Fevereiro de 1962 que viemos para cá.
PS: na foto tirada na Alemanha, o meu pai é o 2ª da direita.

28.1.17

COMIGO MESMO - XLVIII

Os meus pais sempre tiveram uma vida profissional intensa. Quando olho para trás, percebo que não tive uma infância “normal” para a época. Naquele tempo, as mães ficavam em casa a tomar conta dos filhos. Não foi o que se passou comigo.
A minha mãe licenciou-se em Farmácia, na Universidade do Porto, em 1943. A partir de Janeiro de 1947 (portanto ainda antes de se ter casado), entrou para o quadro do Instituto Superior de Higiene - Dr. Ricardo Jorge, onde viria a fazer toda a carreira, até à reforma em 1990.
A sua actividade foi sempre na área da bacteriologia sanitária. O quadro de pessoal, nesta área, era então muito reduzido. Era uma área ainda muito embrionária. A minha mãe trabalhou sobre a direcção do Dr. Arnaldo Sampaio (pai do futuro Presidente da República, Jorge Sampaio). A esse pequeno grupo, quase pioneiro, se deve a importância que a bacteriologia viria a ter em Portugal. Um trabalho apaixonante que em muito ultrapassava o simples emprego. A minha mãe era uma investigadora.
Logo em 1954, ela foi bolseira da OMS (Organização Mundial de Saúde). O estágio foi em Paris no Instituto Pasteur, no Instituto Alfred-Fournier e no Hospital Saint-Lazare, para aperfeiçoamento das novas técnicas de Imunologia e Serologia da sífilis. Em 1960, durante 6 meses, voltaria a Paris e ao Instituto Pasteur, onde trabalhou na investigação sobre o Treponema Reiter e do Treponema pallidum (este último responsável pela sífilis). Em Fevereiro de 1970, novamente em Paris, novo estágio no Instituto Alfred-Founier, para aperfeiçoamento das técnicas de Imunofluorescência. Aí voltaria em 1978, para actualização dos métodos de diagnóstico da sífilis.
A minha mãe conta repetidamente a história da surpresa dos médicos quando aparecia uma jovem senhora a falar de sífilis nas aulas de saúde pública. A minha mãe sempre foi muito "avançada".

27.1.17

COMIGO MESMO - XLVII

Setembro... Todos os anos era raptado em plenas férias grandes. Curvas e mais curvas. Seguia entalado no moderno Simca "Aronde", entre cestas de reforço gastronómico para o caminho e a omnipresente governanta Alice. Pernoita obrigatória no Grande Hotel do Luso ou na Curia. O indispensável bacalhau salgado em Torre de Moncorvo para evitar o derradeiro vómito... Bragança à vista. Nove meses de inverno, três de inferno. Para mim era sempre inferno!
Que estava eu a fazer naquela pasmaceira? Subtraído à moderna Nova Oeiras... Precocemente retirado às namoradinhas de praia... Distante da Marginal... Violado a meio das férias grandes... Contrariado no mais profundo do meu ser?!
Cinquenta Setembros passaram. Muitas mais moscas morreram. Familiares também. Já não há casa de granito. As primas já não querem brincar aos médicos. As curvas do Pocinho esqueceram a vertigem nos acidentes do IP4. O castelo ergue-se agora entre desvairada especulação imobiliária. Os bombeiros continuam a apitar. As serras continuam a arder... Como gostava de voltar a fazer aquelas curvas no velho Simca. Voltar a enjoar na subida para Torre de Moncorvo e passar tardes a apanhar moscas na sombra das figueiras do quintal. Já nada existe…

26.1.17

COMIGO MESMO XLVI


O almoço aproximava-se rapidamente sob a forma de uma nojenta canja de perdiz carregada de miúdos, seguida de rojões com batata entalada ou alheira com grelo cozido. Para rematar, o habitual queijo com marmelada. Em dias especiais havia pisperno com batatas e nabo cozido. Sobremesa, o fumegante chouriço de mel com amêndoas, com apetitoso aspecto a cocó fresco e sabor a goiabada de porco.
À noite, a bisavó Marta, com lúcidos 99 anos, vestia-se a preceito enfrentando o preto e branco da televisão Grunding com sorriso de cerimónia. Respondia à locutora de serviço na certeza de que estava logo ali, dentro da caixa iónica, e que falava directa e exclusivamente para ela. Era escusado qualquer tentativa de explicação do conceito de teledifusão. O diálogo era ponto a ponto… e pronto!

25.1.17

COMIGO MESMO - XLV


A água gelada do rio Sabor deu-me renite para a vida toda. Os pequenos peixes mordiam os dedos dos pés e cobras de água fugiam sinuosamente amedrontadas. A minha prima Luísa, que sempre foi alta e desenvolta, nadava que se fartava, enquanto eu e a Guida chapinhávamos por ali, tentando não ir ao fundo. As cestas de merenda acumulavam-se na sombra dos freixos, guardadas por pais, tios e avós que nunca chegavam a descompor-se em fato de banho, por mais bravo que o calor estivesse.
As moscas atacavam manhã cedinho, na manivela escorregadia da bomba manual do poço situado no fundo do quintal. Cento e cinquenta pesadas voltas enchendo a cuba de granito para a rega da tarde, aumentando exponencialmente os enchumaços ósseos dos meus ombros magritos. Depois vinha a apanha dos figos de capa-rota em escadas gigantes de ferrugem, fugindo das abelhas gulosas e das vespas assassinas. Trabalho supervisionado pelo avô, que dava instruções enquanto, esforçadamente, puxava o ancinho entre alfaces francesas e morangos serôdios.
Às onze horas estava pronto para o primeiro folar do dia, guloso do presunto e das pernas de frango saturadas de gordura temperada a colorau. As cólicas resolviam-se na sanita de emergência na varanda em sobrado com janela panorâmica para o quintal. Lá em baixo via gatos malhados tentando passar despercebidos na penumbra da couve-galega fugindo aos chumbos incertos da minha "Diana 23". Foi naquele quintal que aprendi a fazer pontaria e foi ali que percebi que era míope e tinha astigmatismo avançado. Passei a usar óculos que ainda hoje fazem parte da minha cara.

24.1.17

COMIGO MESMO - XLIV


A rua dos meus avós era a Rua Conselheiro Abílio Beça, mais conhecida por Rua de Trás por contraposição à Rua Direita, ambas bifurcadas na Praça da Sé, em direcção à tutelar torre de menagem. Casa de três pisos e loja, paredes meias com a Câmara Municipal, a escassos cem metros do Museu Abade Baçal. Gravada no granito frontespício, a data abissal de 1783. O número da porta era o 61.
O meu avô Domingos, cidadão honorário de Zamora, vinha da raia com brilhozinho nos olhos sempre pontualmente às sete para jantar. A minha avó Olinda disfarçava e o pessoal tentava não ter conversas polémicas. Política nunca!
O meu avô Domingos era uma personagem incontornável. Levava-me a todo o lado no jipe da Guarda Fiscal de que era comandante. Percorríamos a fronteira. Entrávamos por Espanha sempre que nos apetecia comprar caramelos. A intimidade com os espanhóis é aqui total. A proximidade e a Guerra Civil de Espanha traçaram cumplicidades com o regime franquista, nem sempre totalmente saudáveis.
Depois do jantar a rua estalava de calor acumulado. Caminhada esforçada até ao "Café Leão", ali a 300 metros, na Praça da Sé. Saturação de tabaco. Bicas suadas. Conversas encaloradas. Eu era mostrado como um troféu. Que grande que ele está... Cada vez mais igual ao pai... Então sempre queres ser médico quando fores grande? Grande já eu era. Tinha 12 anos, porra! E, francamente, não tinha a mínima vontade de ser qualquer coisa. Queria era sair dali.

23.1.17

COMIGO MESMO - XLIII

Mas se hoje tenho saudades, naquele tempo de adolescência não era bem assim. A bem dizer, era uma enorme estucha ter de fazer aqueles tremendos 580 km para lá e outros tantos para cá. Tudo sem autoestradas, nem telemóveis, nem sequer GPS. Íamos pela velhinha Estrada da Beira: Mangualde, Celorico da Beira, Foz Côa, Pocinho…, cortando o país ao meio.
Recordo os quarenta graus à sombra. A frescura do feldespato. O cheiro ácido a porco vindo lá dos "fundos", ...
misturado com o cheiro perfumado de maçãs bravo de Esmolfe que enchiam a salinha do rés-do chão. As primas, Luísa e Guida, filhas do tio Amilcar (irmão da minha mãe), com quem brincava aos médicos na obscuridade ominosa da cave brigantina. Recordo moscas, muitas moscas. Moscas que apanhava à mão, em holocaustos diários. Desenvolvi uma técnica muito peculiar que ainda hoje domino e que por facilidade de expressão, denominarei de técnica da “mão-húmida”.
Na casa ao lado, o meu tio-avô Abílio (da parte do meu pai) mantinha uma mercearia com loja para estacionamento de burros em trânsito com pessoal de Gimonde, Carrazeda e Sacóias.
Às 17h tinha lição de acordeão nas freirinhas. O método era 1-2-3-4-5-6-7. Cada número sua nota, cada nota seu número. Não cheguei a perceber quem era mi, porquê si, muito menos onde era lá.